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A mostrar mensagens de dezembro, 2014

Colheita

Crónica de Domingo na Bird Magazine . Aprofundo a textura da tarde quando, ao passar perto de umas leiras frescas, o nevoeiro que parece emanar da terra na respiração de cada torrão revolto pelo arado me traz à memória lembranças de árvore. Dizem, escuto, que as memórias das árvores as fazem imemoriais, portadoras de um tempo anelado, cunhado a âmbar em choro de resina. ´ O Sol de frente, em frente a uma estrada esburacada, faz-me conduzir de olhos semicerrados. Confundo-me na viagem, por entre eucaliptos, pinheiros e pestanas. Os electrões saem sobressaltados da minha frente quando se apercebem que vejo estrelas nas lentes sujas dos meus óculos. Todo o caminho é estrada e, por ela, chegaremos ao instante seguinte da nossa vida, seja ele qual for. É fácil perder a razão e tornar um entardecer num reflexo negro de um céu nublado, enevoeirado, como as pessoas a quem faltam céus. Das indicações que sigo, algumas indicam caminhos para onde não quero ir e lá, onde quer que os caminhos os

Feliz Natal

Falta brasa ao lume que carregamos. O tempo corre na esperança de nos abrandar para a vida. Hoje o Inverno vai nevar num pequeno, indelével, silencioso floco em forma de sorriso. Hoje, o abraço sobrepõe-se ao bom dia, o tempo vai parar à tua frente e, tu, paciente, vais tratar um estranho por tu e sorrir. Hoje vais esquecer-te de ti e, por momentos, vais saber que a paz que buscas és tu, a riqueza que ambicionas é a insegurança de não te reconheceres precioso. Nada mais é valioso além de ti mesmo, o próprio Sol que vês nascer é apenas uma estrela, rara, que dá vida, como tu. Um dia, além de hoje, descobrirás que todos os dias são hoje e que o motor que te faz correr não é meramente comercial, industrial, cultural, religioso, educacional. O que te faz mover é uma ilusão sem sabor, pois nunca te disseram ou ensinaram que tu, criança, és amor. Feliz Natal.

Natividade

in Bird Magazine . Começo a não caber dentro de mim. A quantidade de vida que me mergulha nos olhos, a cada instante, faz-me sentir inundado por coisas, locais e seres que ainda não conheci, levando-me a correr por aí sem sair daqui, a provar sabores que, desconfio, provarei apenas sem este casulo. De real o Sol, o Ar, o espaço onde volito, a cara nua de quem se sabe ninguém, as linhas escancaradas às portas das palavras que choveram. um mundo, além do meu, do teu, onde o Sol é da cor da chuva e a neve cai de cada vez que sorris, um local feito de abraços e de silêncios, porque ninguém ousa falar palavras que não conhece, nem ninguém conhece o real, do Sol, do Ar, do espaço onde volito. Há um pouco do que sou perdido pelos muitos lugares onde não estive. Locais que guardam os olhares que ainda não li. Há uma falta imensa de mundo nas pessoas, que as faz correr sem se saberem em casa. Uma indiferença que não lhes permite ouvir a chuva que cai, em qualquer local, e sentirem frio sem

Frag(men)tos

in Bird Magazine . Sobra-me silêncio e a chuva angular. Aguardo muitas vezes o barulho do movimento à sombra do frio e, enterrando mais as mãos nos bolsos, encosto o queixo ao peito e sorrio. Cabem ainda tantos, peitos e sorrisos, faltando apenas um pouco mais de eu para que a vida venha espreitar as memórias que formam avenidas pelos significados insignificantes de dias de Verão, pelo calor de outra mão, pelo sol que se põe e antes de adormecer encarecidamente beija o chão. Sim, é pelos olhares que bate ainda um coração. A fragilidade de uma gota de chuva engrandece a nuvem, escura, que vai percorrendo o céu subestrelado à procura de um raio de sol onde se fragmente a luz em cores e deixe para quem não vê, apenas sente, outros espectros que vão assolando e assomando à superfície dos sentidos. Talvez um dia chova amor, tão sequiosa a terra. Em cada passo a sensação de afundar o corpo num naco de terra que me engole pela visão. Tomara amanhã amanheça quando em mim meu corpo desperta
Espero pouco da paciência. Basta-me o colo matizado do horizonte crepusculado em tons de azul e lilás. O frio parece alimentar-se da minha cara, enruga-me as próprias rugas e eu soçobro, impludo, na esperança de nascer fora de mim. Curioso como o fumo que nos acompanha numa noite solitária entre caras estranhas nem sequer é nosso.
É tempo do frio me mostrar uma esquina e fazer-me sentar e sentir o calor do silêncio de um entardecer de inverno, mais saboroso de olhos fechados, até o que resta de luminosidade começar a efervescer em memórias que se diluem ao encontrarem a realidade que outros constroem. O mundo é vosso. Eu sou meu.

O costume

in Bird Magazine . Entro no barbeiro, invariavelmente tratam-me pelo nome do meu pai. "Ando a fazer um tratamento, tenho que comer" e sorrio secretamente pela simplicidade com que as pessoas se expressam a quem mal conhecem. A média de idades deve rondar os 70 anos, ninguém sabe o meu nome, apenas o do meu pai e eu, que em miúdo ficava contente, ainda hoje fico por, simplesmente, me conotarem com ele. As mãos são o melhor momento, a cada cumprimento há vidas que me saem e anos que me entram, é uma troca de rugas e calosidades como não encontro noutros locais. Depois vem a conversa de fundo, enquanto a máquina investe aos poucos no (pouco) cabelo, as perguntas provocantes do Sr. João, que me toca no ombro e me pisca o olho pelo espelho, as reacções animadas de quem tem todas as respostas para as perguntas que conheceu, o recordar das mudas de juntas de bois na estação e aqueles que, a 30 km da grande cidade, encetavam mais umas horas de viagem pela estrada, poeirenta, até ao