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A mostrar mensagens de outubro, 2010

Fel(iz)

Domingo, chuva.  E eu aqui, à porta desta casa velha, de xisto, telhado baixo com as traves de madeira negras, a lareira a bramir crepitações ao meu lado direito, o copo de barro na mão a fumegar com a cevada quente, o vento que abana os eucaliptos e os pinheiros.  Eu sou aquilo que escrevo, porque me auscultam as estrelas.  E sou feliz assim.

Sol

O Sol entra-me, literalmente, pela janela da sala. Gosto disto, do simples facto de ele me acompanhar e parar quando o faço, de me espreitar por uma nesga, por vezes duas, vendo-me escrever. Ainda que preguiçoso, levanto algumas vezes o caderno e lanço umas letras ao desafio. Noutra ocasião, coitado, abro o caderno e escrevo apenas no ar, sem tocar o papel, apenas para não o ter, depois, amuado pelo simples facto de, pasme-se, não o escrever! Há um tudo, nesta minha sucessão de nadas com que me visto, que me faz profundamente feliz. Este silêncio de hora de almoço na aldeia, o copo a fumegar em cima da mesa, o pequeno bloco que se aconchega na perna, cruzada, o Sol que se encosta ao meu ombro e esta sonolência que se vai apoderando de mim até que, por fim, se instala e abre a porta para todos estes e estas que me rodeiam, que me sussurram e me sopram na face, saudando-me, falando-me, trazendo-me um pouco das paisagens que, imagino, já pisaste, correndo de um lado para o outro,

Desaguar

Os carreiros cauterizados pelo silêncio são o leito firme onde descansam, agora, os pedidos do destino que esgrime terra de dias, sem hora. Abandonado o abandono sobre uma encosta, esticada, que se veste de verde primavera para se despir, à noitinha, nos tons pintados de nada... De onde partem os regatos agora que se desaguou a foz?

Santíssima Trindade

Adormeço com o pequeno bloco a meu lado. Rio-me, agora, desconcertado e desiludido com o abandono que dou às palavras. O tanto em mim que se quer ajuntar de mansinho em letras, sucumbe ao eu que decalca as vidas que observa caírem da vida, todos os dias, todas as horas. É como a dor, o abraço e o segredo. É como tudo aquilo que é por fora e não se sente, por dentro.

Gente(S)

Parte de mim é, hoje, carteiro em terras de interior, percorrendo freguesias e saudando gentes, levando notícias e recados e recebendo, como nunca, sorrisos e humildade.

S er

As rugas, na face, na vida, pelo que se é, o que não se foi e o que nunca, mas nunca será.

Just my imagination

O vento causa-me frio nos pés quando entra de rompante no apeadeiro, levando com ele umas quantas folhas de jornal. Sentado neste banco de madeira, queixo enfiado no casaco, braços e pernas cruzados e pés a trautear no chão "just my imagination" dos Cranberies... Se existir riqueza no nada, sou multimilionário.

Se(de)

Orvalho a sede pelas paisagens que não sorvo, há um dia que se põe em cada esquina da parede no crepúsculo em que moro. São meus olhos cordéis tecendo as curvas que me afogam, o negro mascarado dos túneis, a voz ausente dos agrilhoados que me evocam. Dá-me a vida e o sonhar, a água que em ti brota ó luar, há gente ainda em ti meu paraíso? Ou não serão chuva as saudades que me teimam em chorar...

Cor(del)

Cintilante o cordel do passado que me ata aos anos, às noites, aos segredos que trovejam no final da tarde ou aos sobressaltos coloridos por entre o fantasma que me arde.

Em mi(m)

A chuva cai no oleado e escorrega por fora da tenda. Quanto é? Há alguns que não vendo. Não sei porquê. Uns são mais meus que do papel. Quanto é? É o que quiser dar. E dão-me. Quer que embrulhe? Na maioria utilizo uma folha de jornal, para que as minhas letras não se sintam sozinhas. Noutras vezes pedem para levar na mão. E ainda que os venda, os poemas são sempre meus, repercutem ainda em mim, nas mãos.

Ce(vad)a

Mais um cavaco para o fogão. A água deve estar quente e vai saber-me bem o cheiro da cevada, a esbatida espuma na negridão da caneca, as mãos em torno da cerâmica e alma a acomodar-se ao corpo, na tentativa de se aquecer além do usual, porque o Sol não é mais quente que o calor humano. E o calor humano, ainda que num corpo pequeno, sabe que também ele se aquece com o Universo que lá habita.

Musgo

Vou saltando de pedra em pedra. O musgo ainda não cresceu. O rio corre mais cheio, tem melhor cara agora que nos dias quentes de Verão. Há qualquer coisa de criança em mim. Sei que do lado de lá, para lá dos canaviais e das margens barrentas, está o meu lar. Vou saltando de pedra em pedra. O musgo ainda não cresceu. Mas eu já e continua a caber em mim o Universo.

Outono

Chegam os dias de queimar os restos das vindimas... Os dias em o gelo desce à pele, em que as fontes jorram água mais fria, em que as casas abandonadas ganham vida com as sombras dos silvados, em que eu, inebriado pelo Sol que se despede, me despeço também com um piscar de olhos à Lua... Continua a caber no meu mundo o Universo.