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A mostrar mensagens de agosto, 2016
O moinho peneira a água que a levada aprisiona, choveram dias até que me sentei no reflexo do grão enfarinhado, meti a mão na algibeira e tirei mais duas, ou seriam três?, vidas de quietude. Andam por aí a verem-me amiúde, é sem intenção, desculpem, é a distração ao postigo chamado silêncio.

Diálogos desprováveis

Crónica de Domingo, na Bird Magazine . - E o que te disseram eles? - Disseram-me para conferir o estado das acções. - E tu viste? - Antes quis que eles me mostrassem as deles. - E eles mostraram? - Sim, um foi ao computador, abriu o browser e andou para lá a conferir se tinham subido e descido. - E o outro? - O outro foi ao telemóvel, uma aplicação qualquer que lhe mostrou que ele estava mais pobre por ter perdido o que não tinha tido. - E depois, mostraste as tuas? - Sim. (risos) - E então? - Pousei o telemóvel, sentei-me em cima do muro, fechei os olhos e estive assim uns largos segundos. - Porquê? O que é que te disseram? - Quando abri os olhos e saltei do muro não disseram nada. - A sério? - Sim. Mas eu quebrei o silêncio, disse-lhes que já estava, que tinha consultado as acções. - Tu, cum camandro… Haja quem te entenda. - Disse que lembrando aquilo que ainda não esqueci, tinha um saldo positivo. - Positivo? - Sim. Entre tudo o que fiz o saldo era positivo. -
Cobre-me o brilho das estrelas de ambos os hemisférios. Fico enternecido pelas estrelas cadentes que o universo atira, para que as conte e, assim, adormeça. Mas na insónia encontro o desprendido destino que se senta a meu lado na cama, fita-me e sorri, somos caminhantes da ignorância por sabermos longe o saber e aqui tão perto um Sol, a nascer.

Pessoa, se é que me posso chamar assim

Crónica de domingo, na Bird Magazine . Volto a descer a estrada, se é que a posso chamar assim, com redobrado cuidado. As pedras, se é que as posso chamar assim, resvalam e algumas esfarelam-se quando as calco na tentativa de me segurar ao ar vazio e quente que sobra ao largo desta tarde quase quase verão. Sem querer agarro-me a um monte de ervas, sem saber, pela velocidade da descida, pelo suor que me faz arder os olhos, pelo monte verde que me pareceu todo igual, que por entre as folhas inocentes, se é que as posso chamar assim, estavam algumas verdes e afiadas silvas cujos espinhos espreitavam orgulhosos acima do caule. Chego a correr ao fim da descida, calculando o espaço e tempo entre a velocidade, o limite de travagem e o leito do rio ali, ao fundo, ainda com um grosso fio de água e as rochas bolbosas, redondas, secas e quentes, imagino eu, pelo calor da tarde a ameaçarem partir os ossos de quem se deixe cair ali, como eu, temo. Consigo parar a tempo, depois de mim algum ca

Diálogos improváveis II

- E agora, que perdeu tudo o que tinha? - Fico com aquilo que sou, minha senhora.
Todas as cores possuem um final de tarde que se agarra às escarpas sulcadas nas faces. Quando a Lua mergulha pelos olhos dentro e me sorri, não sei o que faço. Sorrio de volta? Dou-lhe um abraço?

O homem sonha, despreocupado, na preocupação de existir

Crónica de Domingo, na Bird Magazine . Quando saio do emaranhado de árvores, mato e fetos, esbracejando para afastar os ramos como se vociferasse nos diálogos internos que mantenho com as vozes do passado, vejo uma clareira plana como o interior de uma margarida. Até os tufos de erva irregulares se assemelham a pequenos nenúfares a flutuar despreocupados, abertos ao céu, num lago regular feito da irregularidade da ondulação lenta. Questiono-me como desce o vento até aqui, bons trinta metros abaixo da crista das árvores mais altas. Aliás, nada me explica, até porque estou aqui sozinho, como neste botão de rosa as pequenas folhas espiralam içadas pelo vento, como se ele se entretivesse a experimentar novos truques para velhas audiências e, no entanto, as árvores lá no cimo permanecem imóveis como gigantes pacientes à espera que o orvalho se evapore e se deixe, posteriormente, cair de costas sobre o final de tarde trazendo sonhos molhados pela fresca molécula de um átomo de oxigênio e

O nome dos heróis

Crónica de Domingo na Bird Magazine . O ar frio que força entrada pelos buracos da persiana faz-me pensar noutras estações, mas acredito que o dia mais fresco que se sente seja apenas um apeadeiro nesta linha quente. Quando abro a persiana, gesto que associo ao descerrar de uma pálpebra do apartamento, como se este meu lar acordasse logo a seguir a mim, e a seguir a abrir as janelas, sem que ainda pudesse acreditar nos meus olhos embaciados, vejo os paralelos húmidos, com poças e semi-poças felizes, a chuva que cai envergonhada numa manhã de Verão e o cheiro a terra molhada que banha, figuradamente, e me transporta para a estação seguinte. De quando em vez, assim permitindo o pós-operatório, percorro estradas próximas em busca de algumas coisas, entre elas vistas sobre penhascos e rios borbulhantes, sombras frescas onde não vagueie o bafo quente das tardes e o verdejante sobe e desce de pinheiros, eucaliptos, mato, silvado e o castanho ocre da terra por lavrar, xistos disformes, o v
Choveu, mas não chegou para me afundar os pés na terra molhada. Da próxima vez desço do muro e deixo-me cair com tal força que a terra não terá outra solução que adoptar os passos inertes, enraizar-me e transformar-me numa hortênsia, preferencialmente voltado para o Atlântico.
Caia-me a noite, para que mesmo por entre as sombras das noites, mônadas se divirtam na criação de divindades a quem o dia matizará de cegueira e sobre, no final do cheiro de terra molhada, o aroma a uma casa vazia caiada. E aí eu me vista, de nada.