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A mostrar mensagens de junho, 2018

Silêncio tonitruante

“Silêncio tonitruante”, crónica de Domingo, na Bird Magazine . Habituamo-nos ao silêncio e quando este deixa de se fazer ouvir, a sua ausência é ensurdecedora. Felizmente, as gotas que se esbatem na soleira, quente pelo ensolarado nevoeiro que cobriu o primeiro dia de Verão, e no ferro, também quente, empoeirado, musgado, corroído às sardas, ondulam a sonoridade, mecanicamente trazendo na sua transversalidade o que vibrará no meu tímpano e na miríade de ossos minúsculos com que Deus me votou ao mundo, e à surdez. Sem grande roteiro, o caminho faz-se rotineiro, como mencionei atrás, habituamo-nos ao silêncio de tal forma que é nele, pelo menos para mim, que encontro a voz inaudível e, por isso, verosímil, que vai sussurrando a chuva e o céu raiado, onde aleatórios relâmpagos percorrem como sôfregos cavalos selvagens, indomáveis, irregíveis, e deixando no rasto o ribombar da liberdade e que me cai pelos ombros abaixo como um jugo.  Começo a degustar a pálida timidez de tudo o que me

Altar

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Altar, uma crónica do nada , no Correio do Porto . O chão descomprimido em pó é o único entrave no caminho de um homem só. O calor agarra-se com força aos braços, a transpiração escorre-se na ânsia de se desprender da térmica sensação de se encostar a mim, compreendo-a, até eu me desejo descolar de mim. Por entre resilientes árvores, desmultiplicadas em pinheiros e eucaliptos, um sobreiro aqui e dois ali, os paralelepípedos separados pelo musgo verde que a humidade dos últimos tempos tem deixado no chão, no ar e em mim, carregam-me no esforço de encosta acima chegar ao local onde acaba a última fiada de promessa política, rematada com um baque surdo e seco, assinalando o final dum lugar e o início de outro, menos civilizado, onde os estores das casas adormeceram para não acordarem, na esperança de uma janela melhor. Em trago difícil de engolir, a paisagem vai ondulando em montes como vagas litológicas gigantes que acabam apenas onde a minha parca visão alcança, ali ao fundo do monte

Entre Paredes

Texto para momento/evento em Paredes (declamação de Fernando Soares). Entre paredes, o que nos segura? O tempo em tudo perdura. Nas raízes de um abraço na natureza rendida a um românico ascendido. A paisagem envidraçada do tudo que nunca esteve perdido. Os degraus cambaleiam enquanto ascendemos, jovens, moldados pelos nós que em nós nos identificam. Dominámos montes, vales, escarpas, o passado vislumbrado num momento, o quanto de cada um se transforma monumento. No ouro cravamos o trilho, minando o leito de um mundo. Entre os braços boleados e aplainados cabe um conselho, cabe um segundo. O Sol inclina-se e debulha-se, há caminhos a percorrer de olhos cerrados, cumes, arquivoltas voltadas ao íntimo de um reduto. Aqui, cada um é de si mesmo fruto. O sorriso amassa-se numa regueifa, a romaria traz da fé a sua ceifa, o bastão caminha o romeiro, o céu suspira-se o dia inteiro, arfando-se ao abismo, inspirando-se ao misticismo. Um harmónio escuta-se a cada dedilhar nas paredes do pat

Aqui jaz o amor

“Aqui jaz o amor”, crónica de Domingo na Bird Magazine . Ao abrigo desta sombra, no meio de um dia quente de Verão, como o são todos os dias dos três meses de inferno em Trás-os-Montes, bafiados e acalorentos de tal gradação que me fazem trocar sílabas numa disgrafia quotidiana, como este dia, nascido ao contrário, onde descemos pelas ruas de Alijó (só consigo recordar este nome, os restantes são todos guardados no saco grande e ligeiro, uma espécie de merendeiro, onde cabem as palavras e as letras amassadas pegadas à crosta da boroa que comprei ali acima, ao balcão do café/mercearia/drogaria/padaria/oásis comercial) ao encontro do Tua, agora pachorrento, gordo e opulento, contrariando a imagem anterior da selvajaria e discurso gradativo por entre as fragas, saltando juncos imaginários, onde a linha do caminho-de-ferro, erguida por gentes de ouro nas paisagens de pedra, concorria com o fluir líquido de um fio de água agreste.  Tudo ficou para trás, até a sombra, que enquanto me perc

As árvores morrem tombadas, assassinadas.

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As árvores morrem tombadas, assassinadas . A Crónica do Nada, no Correio do Porto . O vento apanha-me de surpresa, sopra-me arfante na nuca e atrás da orelha direita, assobia como se pretendesse assustar-me pelo impreparo, como aquela palmada amiga que afaga abrutalhadamente o cachaço do comparsa que há muito não se via. Há na forma rude de cumprimento não um distanciamento, mas a proximidade caseira de quem foi criado a pau, o carinho e candura é coisa ausente para quem a vida foi dura, como quando à boca do caminho silvado, com restos de maços de tabaco vazios que exibem o futuro doentio de quem também se faz vazio, me diziam olhos que viram já demasiadas órbitas sobre estes feitos, “saía-se de casa com um bocado de pão e meia cebola com sal e ala para o campo”. Dias que se calcavam como os torrões e uma criançada que se fazia adulta em meses, aos tropeções. Viro-me, o vento rodopia e sorri-me, a gola da camisa oscila momentaneamente, gaba-se de poder agora soprar-me de forma dif