Colheita
Crónica de Domingo na Bird Magazine.
Aprofundo a textura da tarde quando, ao passar perto de umas leiras frescas, o nevoeiro que parece emanar da terra na respiração de cada torrão revolto pelo arado me traz à memória lembranças de árvore. Dizem, escuto, que as memórias das árvores as fazem imemoriais, portadoras de um tempo anelado, cunhado a âmbar em choro de resina. ´
O Sol de frente, em frente a uma estrada esburacada, faz-me conduzir de olhos semicerrados. Confundo-me na viagem, por entre eucaliptos, pinheiros e pestanas. Os electrões saem sobressaltados da minha frente quando se apercebem que vejo estrelas nas lentes sujas dos meus óculos.
Todo o caminho é estrada e, por ela, chegaremos ao instante seguinte da nossa vida, seja ele qual for.
É fácil perder a razão e tornar um entardecer num reflexo negro de um céu nublado, enevoeirado, como as pessoas a quem faltam céus.
Das indicações que sigo, algumas indicam caminhos para onde não quero ir e lá, onde quer que os caminhos os levem, não estarão os meus instantes, lá será futuro (ou agora passado) em que não existi. Existirá melhor almejar que orgulhar de infinito um local que se fez mundo por não termos lá estado?
Todo o caminho é estrada, mas nem toda a estrada é caminho. Valha-me o letreiro gasto de lousa, a caixa de correio para três caixas de correio, uma espécie de matrioscar e partilhar remetentes num distinto destinatário, e o cemitério ladeado por sombras de uma tarde que se faz já tarde.
Não me faltam inícios. Pelo contrário, sobram-me inícios. Momentos em que comecei a escrever sobre o que tinha escrito, mentalmente apenas, como tudo deverá ser.
Entro lentamente pela rotunda sem desviar os olhos do homem que comigo se cruza. O passo arrastado que arrasta vários ramos de árvores que não identifico. Serão lenha, como toda a árvore não colhida, lenha queimada, cinza, mas antes calor, fumo e amor. O chapéu cinzento parece ter sido urdido pelo outono, traz com ele ainda folhas que se fazem cabelo e por baixo deste uma cara castanha, escura, de onde pende um corpo franzino, coisa velha de menino. Há vestes, mas estas são coisa de quem se despe, este vulto caminha na convicção de chegar ao seu instante seguinte. A cada passo que deu, deduzo eu, que segui caminho contrário ao seu futuro, arfou o mesmo ar que um dia a terra transpirou. Imagino-o a continuar o mesmo percurso, a lenha a pender de si como longos braços arrastados pelo alcatrão, pelo empedrado, pelas camadas de detritos que se deitam sobre o chão. Há-de passar por outros, viaturas, criaturas, gentes de cigarro ao canto da boca, como quem namora e beija a morte, a silenciar a tarde com o que sentem de Sol, passar por entre curvas e rectas, soleiras de cafés de gentes sinceras, correctas, sobrolhos de quem se fez passado sem qualquer futuro, apenas um esperar agonizado e atrasado como este chapéu cinzento, cinzelado, em cima do muro.
Pousará os braços, a lenha também, será cortada quando o cansaço que o traz for menor que a vontade dos lábios molhar, o vinho serve também como ar em forma líquida numa hematose que se quer saboreada de olhos quase fechados, como quem conduz ao encontro do Sol.
A lenha cortada, não os braços, entra debruçada por cima da fuligem que cai de cada vez que o vento a corteja. Os fósforos zarparão sobre a áspera superfície e do nada (se é que ele existe) surgirá uma labareda, esta há-de ler as palavras que queima no jornal para já depois da pinha aberta, sem pinhões, fumegar aos céus como quem suspira e deixar arder lentamente, como quem se crepita, pinha e pinheiros, restos destes, tonas que é como quem diz cascas de eucalipto, pedaços de sobreiro e castanheiro. O lume irá crescer, creio, isto da fé é como acreditar que o fogo existe mesmo sem lhe sentir o calor, tal como o amor, a roupa empoeirada será sacudida, de um traje outro surgirá, uma ceroula amarelada, uma camisola interior suada, uma higiene que não tardará a ser higienizada quando a água, mesmo antes de ebulir, cair na tina e for aos poucos lavando corpo de gente. O lume, ainda ele, irá ver uma cama em forma de leito, aconchegando-o ao mesmo tempo que o fumo cativa a atenção para a perda dos sentidos e, sabe-se lá porque magia, adormecer enquanto a noite ainda não atravessou o dia.
Só depois, bem depois, de o ver suspirar, momento em que o corpo se liberta da alma, descansado e ela, alma, volitando longe do calor e do frio, vai dizer-lhe que pode dormir é que o lume, o avisado, irá dormir também, fechando os olhos em brasa lentamente, como quem se apaga de uma jornada.
Pelo caminho ficaram canas secas de um milho não colhido, caras enrugadas pelo frio, o ondular de um rio.
Sei que deveria ter existido nos momentos seguintes, fazendo-me futuro, mas o meu caminho tem estradas que desconheço e, por elas, cheguei a este instante da minha vida segurando ainda todos os momentos em que não existi e escolhendo, procurando, entre cinzas e leiras, o mais maduro sentimento para colher.
Aprofundo a textura da tarde quando, ao passar perto de umas leiras frescas, o nevoeiro que parece emanar da terra na respiração de cada torrão revolto pelo arado me traz à memória lembranças de árvore. Dizem, escuto, que as memórias das árvores as fazem imemoriais, portadoras de um tempo anelado, cunhado a âmbar em choro de resina. ´
O Sol de frente, em frente a uma estrada esburacada, faz-me conduzir de olhos semicerrados. Confundo-me na viagem, por entre eucaliptos, pinheiros e pestanas. Os electrões saem sobressaltados da minha frente quando se apercebem que vejo estrelas nas lentes sujas dos meus óculos.
Todo o caminho é estrada e, por ela, chegaremos ao instante seguinte da nossa vida, seja ele qual for.
É fácil perder a razão e tornar um entardecer num reflexo negro de um céu nublado, enevoeirado, como as pessoas a quem faltam céus.
Das indicações que sigo, algumas indicam caminhos para onde não quero ir e lá, onde quer que os caminhos os levem, não estarão os meus instantes, lá será futuro (ou agora passado) em que não existi. Existirá melhor almejar que orgulhar de infinito um local que se fez mundo por não termos lá estado?
Todo o caminho é estrada, mas nem toda a estrada é caminho. Valha-me o letreiro gasto de lousa, a caixa de correio para três caixas de correio, uma espécie de matrioscar e partilhar remetentes num distinto destinatário, e o cemitério ladeado por sombras de uma tarde que se faz já tarde.
Não me faltam inícios. Pelo contrário, sobram-me inícios. Momentos em que comecei a escrever sobre o que tinha escrito, mentalmente apenas, como tudo deverá ser.
Entro lentamente pela rotunda sem desviar os olhos do homem que comigo se cruza. O passo arrastado que arrasta vários ramos de árvores que não identifico. Serão lenha, como toda a árvore não colhida, lenha queimada, cinza, mas antes calor, fumo e amor. O chapéu cinzento parece ter sido urdido pelo outono, traz com ele ainda folhas que se fazem cabelo e por baixo deste uma cara castanha, escura, de onde pende um corpo franzino, coisa velha de menino. Há vestes, mas estas são coisa de quem se despe, este vulto caminha na convicção de chegar ao seu instante seguinte. A cada passo que deu, deduzo eu, que segui caminho contrário ao seu futuro, arfou o mesmo ar que um dia a terra transpirou. Imagino-o a continuar o mesmo percurso, a lenha a pender de si como longos braços arrastados pelo alcatrão, pelo empedrado, pelas camadas de detritos que se deitam sobre o chão. Há-de passar por outros, viaturas, criaturas, gentes de cigarro ao canto da boca, como quem namora e beija a morte, a silenciar a tarde com o que sentem de Sol, passar por entre curvas e rectas, soleiras de cafés de gentes sinceras, correctas, sobrolhos de quem se fez passado sem qualquer futuro, apenas um esperar agonizado e atrasado como este chapéu cinzento, cinzelado, em cima do muro.
Pousará os braços, a lenha também, será cortada quando o cansaço que o traz for menor que a vontade dos lábios molhar, o vinho serve também como ar em forma líquida numa hematose que se quer saboreada de olhos quase fechados, como quem conduz ao encontro do Sol.
A lenha cortada, não os braços, entra debruçada por cima da fuligem que cai de cada vez que o vento a corteja. Os fósforos zarparão sobre a áspera superfície e do nada (se é que ele existe) surgirá uma labareda, esta há-de ler as palavras que queima no jornal para já depois da pinha aberta, sem pinhões, fumegar aos céus como quem suspira e deixar arder lentamente, como quem se crepita, pinha e pinheiros, restos destes, tonas que é como quem diz cascas de eucalipto, pedaços de sobreiro e castanheiro. O lume irá crescer, creio, isto da fé é como acreditar que o fogo existe mesmo sem lhe sentir o calor, tal como o amor, a roupa empoeirada será sacudida, de um traje outro surgirá, uma ceroula amarelada, uma camisola interior suada, uma higiene que não tardará a ser higienizada quando a água, mesmo antes de ebulir, cair na tina e for aos poucos lavando corpo de gente. O lume, ainda ele, irá ver uma cama em forma de leito, aconchegando-o ao mesmo tempo que o fumo cativa a atenção para a perda dos sentidos e, sabe-se lá porque magia, adormecer enquanto a noite ainda não atravessou o dia.
Só depois, bem depois, de o ver suspirar, momento em que o corpo se liberta da alma, descansado e ela, alma, volitando longe do calor e do frio, vai dizer-lhe que pode dormir é que o lume, o avisado, irá dormir também, fechando os olhos em brasa lentamente, como quem se apaga de uma jornada.
Pelo caminho ficaram canas secas de um milho não colhido, caras enrugadas pelo frio, o ondular de um rio.
Sei que deveria ter existido nos momentos seguintes, fazendo-me futuro, mas o meu caminho tem estradas que desconheço e, por elas, cheguei a este instante da minha vida segurando ainda todos os momentos em que não existi e escolhendo, procurando, entre cinzas e leiras, o mais maduro sentimento para colher.
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