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A mostrar mensagens de janeiro, 2016

Vem ter comigo

Crónica de domingo na Bird Magazine O Sol vai aquecendo lentamente e timidamente, apesar do periélio, a manhã de Inverno que se faz amanhecida aspergindo luz encostas acima até se encontrar com a hora de almoço. Vou caminhando lentamente, por vontade e necessidade, com as mãos nos bolsos, por vontade e necessidade ainda, pelo emparedado caminho que me habituei a gostar como a pele que permite manter íntegra a amálgama carnal que piloto enquanto habito neste orb. O mundo parece mais pequeno, agora, os muros mais baixos e a distância de mim à minha própria sombra vai subindo, sem que isso signifique que a escuridão projectada esteja mais longe da luz desejada. Concentro os passos em planos de três, vá-se lá saber porquê, um, dois, três, reinicia, um, dois, três, reinicia, sem qualquer motivo aparente e na tentativa de descobrir uma razão, dou por mim a pensar no ditado que três foi a conta que deus fez, por isso, nesta matematicalidade talvez exista um sentido que não descobri. Embora
Olha do que dormes infante sem saberes do redomizado acto agora que se acomete infame o arbitrário destino, onde regarás as palavras se a boca secou qual a noite que te parou?
Tento perceber em que lado de mim quer a vida que eu viva.  Se pelo saltitar pardalesco de nuvem em nuvem, se pelo nebular saltitado de pardal em pardal.  Aqui já nem vive o bem, nem se amortalha o mal.  Quando a vida tenta perceber de que lado vivo, respondo-lhe no calado grito do que escrevo, a vida se vive em mim habita no horizonte que construo a cada piscar de olhos, não há lugar para dimensões quando o infinito é da cor do universo que finda.  Há tempo, ainda? (fragmento I de crónica na Bird Magazine, 16/07/2017)
Tenho que esperar que o futuro adormeça, para só aí poder tirar-lhe da fronte, em silêncio, a madeixa que se cola à sua vida e o faz pensar ser algo a ter. Ganha o futuro e eu, calado, à espera que acorde e eu possa fingir dormir à revelia da rotação sobre um despossuído eixo. Translado-me e por aqui me deixo. (fragmento II de crónica na Bird Magazine, 16/07/2017)

A nova janela

Crónica de Domingo na Bird Magazine Espreito as nuvens cinzentas pelas últimas vezes deitado no azul de napa da cama. O mau tempo aligeira-se, ansioso, acredito, por fugir das intempéries em que se transformaram os pensamentos das pessoas. O Inverno troca rápidos olhares com a Primavera, encolhe os ombros e sacode a cabeça, fazendo cair um nevoeiro lento, que se vai pegando ao início da tarde como se clamasse pela noite, quando todos dormem e nos sonhos dos humanos vivem apenas os medos económicos. Esforço-me por concentrar os dez minutos do exercício em várias palavras, armazenando em partes da memória pequenas letras que possa, depois, puxar como que por um cordel e vê-las saírem, uma a uma, formando frases. Infelizmente, a sede de sentir faz-me sorver todos os episódios que vou colhendo da plantação de esperanças, causando o deserto de palavras onde vou caminhando em círculos. Pouso o, aos olhos dos outros bastão, cajado e preparo-me para nova ronda decimal em nova posição. Ao

Fotografia desvanecida

Crónica de domingo na Bird Vejo-o apoiado no balcão. Separam-nos poucos meses de idade e muitos, muitos anos de vida separados, mas, ao mesmo tempo, juntos na cumplicidade que fica sempre que deixamos para trás os portões, outrora altos, da escola primária. Desde que o encontrei na fisioterapia, cada qual na sua função, eu de paciente impaciente e ele de benevolente bombeiro, que pensei para mim mesmo em guardar no telemóvel a fotografia de grupo, tirada no 2º ano, ou 2ª classe como prefiro dizer, nos degraus de acesso à porta de entrada da minha querida escola primária. Noutros anos o, agora grande, balcão onde apoiamos cada um de nós um cotovelo, teria parecido enorme, um pouco como o muro que separava os dois edifícios da mesma escola, onde o desnível e o saltar para chegar em primeiro lugar à fila de distribuição do leite pareciam tarefas dignas dos ainda escassos e poucos afoitos super heróis que a televisão a preto e branco apresentava. Enquanto o tempo saboreia os cabelos br

Desabado

Crónica de domingo na Bird Magazine . Porque o tempo não aguarda, simples pelo facto de quem não tem guarda, vai ribombando neste fim de tarde, fazendo lembrar o inverno que já chegou onde nunca saiu, da mesma forma que estremece os vidros das janelas da sala, que olham para mim com legítima inveja, ao verem-me deitado no sofá, ausentes sequer da noção da dor que me aflige. O vento anuncia-se mesmo após fechar os estores, ondula-os como se fossem as cristas encapeladas de um mar invisível cujas ondas se deixam cair esparramadas na areia que imagino ser o chão onde descansa a minha chávena de chã. Permito-me desligar toda a interferência que se acomete aos sentidos, como se tudo fosse fonte emissora de pensamentos que se pretendem incutir. Hoje, afianço-me, serei eu e eu mesmo. Embora a televisão me olhe, escura, o computador descanse e arrefece nas minhas pernas, no silêncio que consigo ouvir no espaço entre as pingas grossas de chuva que caem lá fora, nos paralelos, e nas ouras gotas

És perança

Crónica de Domingo na Bird Magazine. “És perança” A esperança parece espreitar de cada vez que as nuvens soltam as mãos e, afastando-se, deixam que o céu noturno e escuro exiba a escuridão polvilhada de luz, como se uma atenta e bondosa cozinheira, de avental mascavado de sabores e cores de outras receitas, afundasse uma mão na bacia onde descansam infinitos flocos de fé e a tirasse, em seguida, fechada e prenhe, com pó a soltar-se acompanhando o movimento do braço como a flamejante cauda de um cometa, para a espalhar sobre a vítrea mesa da cozinha. Estaremos abaixo da mesa, crianças, como que a brincar com os pequenos brinquedos que nos dão adultos, crianças ainda, sem saberem que olhar para cima, acima e por dentro de nós mesmo, é o brinquedo que nos permitirá ter esperança. Na noite de ano novo, quando as badaladas se vão repetindo ao redor do berlinde azul esverdeado que é o nosso, salpicamos o céu noturno de estrelas que atiramos ao ar, aspirantes de cozinheiros e aprendizes de ag