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A mostrar mensagens de maio, 2017

Dois relâmpagos e três trovoadas

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Crónica, no Correio do Porto . O tempo, apesar de não existir, vai fazendo de cada um de nós o modelo para as suas pinturas. Crava uma ruga aqui, uma saudade ali, um qualquer padrão que nos embrulhe e entrega-nos à vida, apesar de não existir, para que ela se encarregue de nos unir num gigantesco mosaico, um dodecaedro cujas faces internas são o caleidoscópio das memórias. De todas as ambiguidades, a dualidade da vida vs tempo parece levar em si, bem escondida, todas as palavras que teimo em tentar compreender antes de escrever. Troco dois relâmpagos por três trovoadas murmurantes a quilómetros de distância. Ou, então, por um segundo de imortalidade nas rugas pintadas pelo tempo, esculpidas por mim, artesão de mim mesmo. Entro pelo sono abraçado à noite, na esperança de ela mesma, quando se cruzar no horizonte com o dia que nasce, lhe passe os sonhos que se diluem quando acordo. Nunca acontece. Acordo com o despertador e, nesse momento, tudo e todos que me rodeavam se assus

Quando o sonho chegar a voar e me estender a mão

Crónica na Bird Magazine . No momento, neste, em que sinto o vazio de não escrever, ter palavras agarradas à alma, frases inteiras entrelaçadas num emaranhado novelo, é quando desejo a simplicidade de olhar o céu estrelado, ainda que me separe dele alguns pisos e uns quantos quilómetros. Hoje, na ausência de filosofias, vou escolher retirar do forno da vida as noites mais frias, para que possa imaginar sentar-me na beira da cama, pendendo os pés para um vazio luminoso e adormecer nesta posição, para me levantar rapidamente quando o sonho chegar a voar e me estender a mão. Poucas luzes brilham mais que uma noite sem lua. Enquanto o vento abana as lâmpadas no coreto, há uma musica tua, que se toca, corpo e sinfonia, para lá do frio que começa a cair desamparado, entre os ombros e o cigarro.  Sou o lume que apago, pelos degraus da justiça, ascendo à boleia, literal, da compaixão metamorfoseada em casulo, hoje a vida nasceu ao contrário, não te preocupes, novo olhar poderá ter-te, no

De que vale o silêncio se ninguém o escuta?

Crónica de Domingo, na Bird Magazine . Seria, provavelmente, capaz de partir a pé por esses caminhos fora.  Não é à toa que vagabundo rima com mundo.  Acabo por cobiçar o sorriso desligado da alegria que vejo nalgumas faces, cobertas por barba, em corpos que não se inibem em deitar num banco de uma estação de comboios.  Indiferentes ou talvez não, ao lixo acumulado na linha, nas metades de tonéis que nunca o ambicionaram, mas são agora recipientes onde descansam em paz acalorada várias garrafas de plástico de líquidos que são caras formas de se beber má água. O átrio da estação está vazio.  O calor convida a uma estada prolongada num velho banco de madeira.  A poltrona amarelada olha de soslaio.  Coitada, não percebe que aquele tecido empoeirado não convida a que alguém, mais ou menos incauto, se sente ali.  As horas passam devagar quando olhamos para o relógio, antigo, a olhar com cadência do alto da coluna de madeira.  Basta desviarmos o olhar para ele desatar a correr de

A fé

Crónica de Domingo na Bird Magazine . Eram as palavras como tenazes folhas de oliveira, as sombras lânguidas paredes que circunscreviam os montes onde o teu sol, como luz que eras, se permitia descolorir para que todos os outros, como nós, cegos, orassem sem saberem versicular.  Pergunto-me se ponderavas tudo caminhar para isto. Seria, Cristo? Sobra-me, enquanto arrumo o que sou, as montanhas ao longe, cercadas por um mar agitado que nunca as banhou.  Não tenho medo de morrer, mas tenho um medo irracional de não viver. Sobram-me as estradas sinuosas que, obrigatoriamente, calcorreiam quem não sabe voar.  Sobra-me a consoada e o anuncio, festivo, de que a neve é azul e o céu, esse, é da cor que eu quiser, porque tenho como parceiro este estranho homem, comido pelo tempo, abrigado sob um alpendre tolhido de fumo, acompanhado de dois santinhos, que irei saber, quando voltar atrás e o ler como quem acorda, serem nossa senhora e o menino jesus.  Garrincha, na falta de primaveras, é

Royal mile

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Royal mile, crónica no Correio do Porto . A Royal mile estende-se preguiçosamente, esquecida quase que está pelo calcorrear maléfico das altezas reais que de gente fez degrau e, abaixo e acima, fazia do povo sina. O vento corre seco e frio, traz-me ao ouvido recordações caledónias e o sussurro de uma gaita-de-foles, espremida no regaço quente dum puto, cara de sonho, sorriso de vida, onde cada libra vale 15% para outros putos cujo cancro coloca cara de dor e sorriso de esperança no dia seguinte e mais 15% para aqueles que não se conseguem lembrar da própria vida. As paredes dos prédios tornam o negro ainda mais agreste e a multidão faz-se maré de um mar que não parece saber para onde caminhar. Os cheiros oscilam entre o conhecido puritano e o inolvidável sagrado, de vidas distintas e épocas remotas, acometidas para o presente que se imiscua com todos os tempos, agora que o próprio tempo parece deixar de correr para ser sempre hoje. É quase noite, o cachorro levanta preguiçosamente