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A mostrar mensagens de junho, 2016

Nada

Crónica de Domingo na Bird Magazine . Não havia nada. Partia de manhã, estrada abaixo, quando o dia ainda vinha monte acima, já o comboio silvava ao longe trazendo o vento o claquear seco e agudo das rodas no carril agrilhoado às negras e oleosas travessas.  O passo apressa-se, as pernas deambulam num apressado destino.  Em dias de neve pareceria que por ali tinha passado um gigante, pegada aqui, pegada adiante, mas na verdade era apenas a corrida solitária de um homem, um pai (qual a diferença?), cujo frio na cara de uma manhã de um Inverno dos bons (não destes, doidos, que aparecem agora temperados em qualquer estação), contrastava com o beijo quente que a mulher, uma mãe (qual a diferença?) lhe tinha deixado nos lábios e na bochecha enquanto limpava a cevada dos lábios com o punho do pijama. O comboio aparecerá afobado, vem de ventas fumegantes, aquela testa grande laranja e branca, a travar há duas curvas para se imobilizar em qualquer sítio entre o início e o fim do cimento

Encontra-me um justo que seja…

Crónica na Bird Magazine . Fixo as lâmpadas do tecto. A semelhança com os filmes é assustadora e real. Há um cheiro a frio no ar, faço uma piada comigo mesmo ao dar por mim a, como sempre, contar de três em três tudo o que vejo, desta vez são os buracos frios da placa de metal onde estão afixados candeeiros e uma parafernália de led’s. Adormecem-me. Acordo, falam comigo e ouço tudo muito alto, quero falar e perguntar, mas nada sai da boca. Fixo as mesmas lâmpadas do tecto. A semelhança com os filmes continua a ser assustadora e real. As vozes novamente, as faces surgem de repente, primeiro são um borrão indistinto de cores que não identifico e, lentamente, aglomeram-se até passarem de vultos a faces, conhecidas felizmente. Agora sim, acordo, é noite, estou confuso. O tempo demora a passar, vejo-o chegar até mim, pendura-se nas grades da cama, fita-me, pisca-me o olho, mas eu, entre dores e assustado, viro a cara rabugento e fito o céu cinzento carregadinho de ameaças chuvosas e ele, te

Destino

Caro destino, tu vais chovendo na tentativa de me animar, obrigado. Por entre aguaceiros sou brindado com gestos de amor e simpatia, falta apenas o arco-íris. Assim, cara vida, desenlaça o novelo e tricoteia-me breve nos caminhos viajouros que me têm levado ao encontro e descoberta de mim, sempre nos olhares de com quem me cruzo.

O meu horizonte

Crónica de Domingo na Bird Magazine . Atrás de uma montanha há sempre uma maior, dizem ou ouvia-se dizer quando esta questão de destino era tão só e apenas uma fé, dicotómica, negro ou branco. Na verdade, atrás de uma montanha parece vir uma tela ou uma rugosa superfície onde a paisagem muda a cada vez que olhamos. Chego ao topo da montanha, o vento chega logo atrás de mim, sopra sem emitir som porque o silêncio vem ainda a subir a ladeira e neste vácuo nada se propaga. Lentamente chega, afobado, e logo o silêncio se torna ensurdecedor refastelado como um déspota multicéfalo sentado num trono chamado país acolchoado pelas vidas de quem, cegamente, o alimenta o viver. Uma ou outra folha de eucalipto perde-se pelo ar, vai dançando, espiralando e oscilando até eu a perder de vista, não porque tenha ido para longe, mas porque foi para lá do que o meu olhar alcança. Não há mais montanhas além desta. Daqui para a frente apenas eu faço o horizonte e na indefinição tudo se perde para além

Sede

Crónica de domingo na Bird Magazine . Só ouço o cascalho ranger debaixo dos meus pés.  Os godos disformes fazem-me por vezes resvalar e tropeçar no ar como se inebriado me deixasse levar pelo vento e este, como sempre faz com todos os sonhadores, me fosse atirando contra as esquinas do tempo enquanto procuro aquilo pelo que o tempo me fez vir aqui. Deixo cair a caneta e o bloco. Na verdade caem os dois, tenho o vício de trazer a caneta presa ao fio do caderno, vergo-me com o que as dores de costas me permitem e apanho-o novamente.  Eu e as palavras somos como um ioiô, juntas e afastadas pela gravidade que se enrola nas mãos e atrai ou repele as letras para, suspeito, simples deleite de me visualizar atrapalhado com a cadência sincronizada e, por vezes, pendular dos pensamentos. Era o cascalho, dizia atrás, que me ouvia os passos falheiros enquanto eu subia o caminho, ladeado de uns muros de granito feito com pedras sobrepostas quase ao acaso, mas como em tudo o que existe deba
Belisco o grão de areia e acordo a praia.  Espreguiça-se sem alardo, assim são as adultilidades da vida, gente que se faz pessoa porque cresceu antes de nascer.  Um dia beliscar-me-á o sorriso e eu farei de conta que o entendo e, ignorante, entrarei água acima.
Vai no resvalo do pensamento rochoso o segredo da encardida mão, a mesma que enterra no recém arado solo e de seguida vai ao peito.  Poderá o coração bater ritmado pelo silêncio que sobe à alma e sentir-se vivo porque não se sente?