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Dia de um Pai

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“Dia de um Pai” ou um dia do Pai diferente, numa Crónica do Nada, no Correio do Porto. [poderá ler aqui ] A tarde de sábado, com um vento frio, traz consigo a última saída de casa de um octogenário jovial, sorriso fácil, tracto doce. A aldeia, apesar de vila, habita-se ainda dos idosos que resistem, enraizados, ao soluçar da passagem do tempo, testemunhas que são de um progresso que trouxe comodidade ao corpo, mas vazio às pessoas. Somos todos o classificado algoritmado potencial cliente de algo. Quem nada compra, nada vale. E quem nada vale não tem valor. Há quem lhe chame solidão. Há quem lhe saboreie a dor. O sobretudo negro pesa-lhe tanto nos ombros como as translações completas a um astro que o Homem habituou a respeitar. Cumprimenta-me com um acenar de cabeça. O sorriso quente que me aquece, debaixo do toldo do café, abrigado de mim mesmo. Dirige-se à montra do minimercado, por entre cartazes de festividades com horários para visitas filarmónicas e dos recentes “procuram-se traba

Sozinha

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“Sozinha”, mais uma contribuição no Correio do Porto, na minha secção " Crónicas do Nada "   – Ela está sozinha.   Foi a primeira frase da matriarca, ainda antes do proverbial bom dia, com que me deparei na sorumbática manhã de sábado, talhada pelos latires ansiosos do canídeo. O gato, senhor de si mesmo, chegou, viu e venceu, marcando o território, neste caso o celofane transparente que plastifica a protecção singela da ilharga do roupeiro. O cão, senhor de outros, fareja, segue-lhe os passos e as secreções, urinando com mais veemência. Ausculto o diálogo monologado da senhora, sexagenária tardia e mãe da cliente, onde a labuta universal de uma vida voltada à adversidade com um sorriso valia o epíteto de profissão. Aqui há os sardinheiros, os pedreiros, os charés, os presuntos e outros que esqueço agora, na sombria tarde de domingo, onde o ecrã do computador aquece o leito sobre mim mesmo, na camisola de lã cingida ao que me prende à vida (a qual me orgulho saber não existir

Reencontro

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“Reencontros”, crónica do Nada , no Correio do Porto. A noite de Dezembro surge à esquina do edifício da Câmara Municipal. Já a tinha visto na cara divertida da criança que sujou o nariz na espuma do chocolate quente e no vistoso e dançante bafo de menino, que segue ao colo do pai. Um presépio andante, moderno, um menino Jesus pelo colo, Nossa Senhora de tacão alto e cachecol a embrulhar o decote luxurioso, um José altivo desgrenhado com um sobretudo aberto ao vento, o mesmo que surgiu ali atrás, na esquina, e uma menina Jesus, a verdadeira inclusão religiosa, a soprar o wengé líquido. Descemos a estrada que leva ao antigo Hospital, o restaurante, segundo o GPS, é no próximo cruzamento e lá esperam já por nós. O reencontro com os amigos, principalmente volvidos anos, décadas como no caso, é apenas um abrir da porta da sala de aula e ver, em pé ou sentados, debruçados nas cadeiras, trejeitos de adolescentes breves em corpos que a vida fará por curtir. Aos poucos, como que se tivesse toc

Cinzas

“Cinzas” ou o que sobra de uma crónica Natalícia. No Canal N. Aqui . As cinzas dormem esquecidas do fulgor da noite anterior, repousadas na espessa pedra cujos pés das panelas negras fizeram as covas onde se acumulam as memórias do que não se sabe cozinhar. Por cima, o presunto defuma-se e as teias de aranha ondulam sob o peso da fuligem que o vento, aproveitando as telhas mal sobrepostas, anima.   A noite de Natal, ao contrário das outras, traz consigo o barulho bater das portas do automóvel de cilindrada elevada cuja toponímia automobilística ostenta brasões de cantões difíceis de pronunciar. Depois da velha porta de madeira abrir e se ouvir o tilintar da pequena persiana que serve de coberto para a caixa de correio, ouvem-se os miúdos descerem chapinando o tempo e a chuva que se infiltra por onde quer que se olhe.   A aldeia ilumina-se de alegria, não há pinheiro que resista aos cavaleiros perdidos que regressam ao lar que os viu parir. Os gorros sobre as orelhas e as felpudas pantu

Milagre

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“Milagre” ou a forma de viver a vida numa crónica do Nada , o Correio do Porto. Na base da estrada, junto ao desnivelado passeio, vejo a escadaria alva piramidalmente subindo e lamento o meu despreparo físico. Suspiro e inspiro a ideia de que percorrerei aqueles degraus várias vezes até, por fim, cansado, sobrar tempo para rematar o trabalho, ou ajudar a rematá-lo, pois sou tão amador nesta arte, como a deitar uma mão cheia de palavras à terra e ver nascer uma frase.   A simpatia usual acolhe-nos abrindo a porta do coração, pedindo-nos desculpa pela casa estar desarrumada. Há pessoas que vivem e quase pedem desculpa por viver. (é deles o reino dos céus) Olhando-me do fundo de uma altura que a vida não deixou crescer, sorri. Diz-me irmão de meu pai, o que desperta na fisiológica versão mais velha de mim um sorriso. E volvido o engano, desculpa-se novamente. No meu proverbial silêncio respondo com um encolher de ombros sorridente. Ao fundo do corredor, do canto da sala, uma Nossa Senhora

Nascente

Eis a crónica mais recente no Canal N ( https://www.canaln.tv/cronica-nascente/ ) Nascente . Tinha estado virado para o mar, catraio entretido com o avançar e recuar das ondas a meus pés alvos, desconhecendo que nas minhas costas o ondular marinho dobrara terras, criara serras, eriçara pinheiros, sobreiros, oliveiras, carvalhos, castanheiros.   Ao ritmado canto das ondas caindo sobre elas mesmas, sobre o olhar ladino de um ou outro seixo, nas minhas costas a vida fazia-me frente. Eu apenas não sabia, inocente.   A maresia sobrava presa nas dunas, enterrava-me na areia, o mar como traquina borbulhara nos dedos a arfar. Pensara eu que me convidava a navegar.   Quando o Sol se pôs nas águas que pareciam ondular acima do próprio oceano, piscou-me o olho a saudade. Afogava a cidade. Quase caído ao firmamento, convida-me Febo em inusitado lamento, voltar costas à maré, sulcar novos horizontes e, eis, imponente, Trás-os-Montes.   Havia toda uma ilha imensa rodeada de um mar de pedras por onde

Shabat

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Shabat , a minha Crónica do Nada , para ler no Correio do Porto.   É dia do Senhor. Faz sentido. O mundo pára e descansa, o Criador espreguiça-se da laboriosa, embora fastidiosa, tarefa de olhar a sua obra, o momento profano em que criou o humano. Galgo as margens do Douro, enveredo nas serpentinas alcatroadas que ladeiam as veredas esverdeadas onde, em tempos de limpeza de valetas, na ausência de cantoneiros, outros de roçadora na mão ou debaixo do sobreiro protegido à escondida da chuva, atrás do suor e da viseira de rede, abrem alas à procissão quotidiana e incógnita. É sábado e é isto que me pede o meu pai. Pai. Ambos. Várias dúzias de curvas e chegamos. Portas abertas de par em par, a corda da roupa que se iça para que a manobra permita aproximar da porta de entrada e afastar do esforço de descarregar. Sem o saber anoto-me, fitando ao longe os montes de costas voltadas ao Douro, o Sol a escorrer-se na manhã fria, a vizinha provocadora que assoma à janela com testos de alum