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A mostrar mensagens de dezembro, 2016
Fito-o mais uma vez, mestre Torga, a lombada amarelada de um livro branco sujo, como a neve que se derrete cansada de ser alva.  Não permito que o sono me tombe sem, antes, talhar na retina com a mesma paciência do meu velho Garrinchas o caminho de volta para a terra.  A cacofonia da ausência de verde vai-se desfazendo à medida que ondulo montes abaixo até uma encosta de simplicidade me permitir escutar o bater do bordão nas pedras gastas por serem caminho de ninguém.  Quando este mundo me começa a fechar os olhos, faço-lhe a vontade, estico o braço ao frio o essencial apenas para alcançar o interruptor e, sereno, adormeço corpo e tosse na certeza de estar quase a acordar.

Feliz Natal

No regaço ameno da família, onde se soltam as máscaras, que te brilhe o interior adormecido e te sintas, também, deus menino. Recebe o calor da simplicidade nos braços abertos ao que és, escuta o silêncio que se apodera desta noite em bicos de pés. E se o universo te escuta e na voz encontras solução, saibas que em todo o estranho habita um irmão. Que te brinde e aconchegue o meu pedido, desembrulhado, para que a saúde te vista, a paz seja a tua conquista e embora humilde, atiro os desejos ao ar para que se precipitem em ti, mesmo sem nevar. Feliz Natal. Miguel

Está a chegar o verbo

in Bird Magazine em 18/12/2016 Não sei como medir as palavras que vejo e, depois, escrevo. A distância que me separa de agora à letra é preenchida por inúmeros pensamentos, tantos que quando penso no pensamento sobre eles já eu sou rememoração. Será possível eu ser uma parte, um resultado retornado a meio da recursividade que é uma vida entre vidas? Já deitei o Universo, aconcheguei-lhe o colorido manto de estrelas enquanto ele me pedia uma história. Sem me lembrar de nenhuma, contei-lhe a vida de uma estrela que tentou brilhar por duas vezes: - Duas vezes? - perguntou-me. Eu lá lhe expliquei, com modos de eternidade, que era uma metáfora para algo que existiu sem ter acontecido. Não me pareceu convencido, não o censuro, é ainda um universo em expansão, uma criança. Entre perguntas e respostas, saltando recursos expressivos, cansou-se e antes de fechar os olhos de nebulosas, perguntou-me já meio adormecido: - Essa história é sobre amor? Disse-lhe que sim, era o Amor. Bastou-lhe a exp

Etéreas obras

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in Correio do Porto . Não pelo frio, que corre lá fora, mas pela memória de ver serpentear a espuma do café sob a negrura do líquido e dos dias, que me aquece as mãos em concha segurando a tigela. Não pelo calor, que há-de deslizar a seu tempo pelas paredes exteriores e interiores de um mundo físico, onde cada sombra terá a certeza de sobreviver até nenhum sol mais nascer. Por onde, por quê, porquê, os dias e dias salpicados de cadências rítmicas que não soam, que não são. Há onde tu lá estás algum percalço que faça cair as estrelas quando tropeças nas etéreas obras que criaste? Tenho por fundo o fundo, apenas. Está para lá, onde as memórias se enaltecem do futuro que ajudaram a edificar, mas cujo fruto nunca puderam saborear. A cada passa um futuro, o potencial gravítico que me agarra ao planeta. Como o adoro. O planeta. O futuro. Terminarei ainda antes da música, mas mesmo que não trinem as pautas, mesmo que a filosofia me abandone e eu seja apenas um pensamento parado, a

Advento

Crónica de Domingo na Bird Magazine em 11/12/2016. O vento arrepia um pouco a noite. Os Clérigos erguem-se sem grande preocupação pelos tempos que se descem ou se sobem mediante a montra mais ou menos colorida. Por entre a escuridão perene de montras onde se compram pessoas pela suprema desnecessariedade, há luminosas escarpas onde se deitam cedo os estivadores dos sonhos, nos seus apartamentos de cartão com camas de jornal e tectos de velhos cobertores que a caridade alheia se lembrou de ali construir. Há um odor a abandono que se mistura com as fachadas lavadas (e as crianças cinzeladas a tinta colorida e olhares inocentes nos azulejos por cima da porta), aqui parece florir a prosperidade da solidão e desvio do normal. Ou seria o normal desvio da solidão prosperificada? Esbarro os meus olhos em olhos negros e tristes de quem se vê gente, mas é vista pela gente como calçada. Desliza o dedo nos sulcos da cara como seus trilhos de eléctrico e apeia-se por momentos da memória, esquece

Vai dar entrada na linha número dois…

in Bird Magazine , 04/12/2016. Puxo o mais que posso as mangas da camisola para os pulsos. Tento evitar o contacto da pele com o frio inox do balcão do bar da estação de comboios. Saboreio, ainda antes de sorver, o cheiro quente do café em espuma misturada com o leite. - Está muito quente? Respondo que não com a cabeça, apenas por educação, pois já a língua me ardia e doía e os lábios, de gretados, passaram a uma espécie de carne mal passada num braseiro de noite de Natal. Um senhor titubeia até ao meu lado, parece uma folha que cai e não sabe que já é Outono. - Esta merda de doença. Tem Parkinson, fala comigo ao mesmo tempo que tenta controlar o corpo. - Já está pronta? O senhor do outro hemisfério do balcão responde afirmativamente e diz-lhe para trazer a outra. De repente pára, olha-me e encolhe os ombros um pouco envergonhado, parece apenas agora reflectir sobre o que disse. - Deixe estar, eu vou buscá-la. E dirige-se para a cadeira/veículo eléctrico, levando a bateria que tinha