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A mostrar mensagens de maio, 2020

Arde e ganha

“ Arde e ganha ”, crónica no Canal N. As tardes de domingo prolongam-se pelos restantes dias da semana nas aldeias onde o tempo parece não habitar. Passo devagar, intriga-me o nome de uma rua mais do que a localidade, assim como os entalhes graníticos nas paredes melancolicamente cultuais cujos capiteis, lentamente, soçobram à passagem dos homens, mas não dos anos. Uma trindade de idosos, como constelação afastada, perde o brilhar no corpo torpe, moreno, cujos trejeitos capilares esbranquiçados se escondem por debaixo das camisas desabotoadas e das boinas descoloridas. Aproximo-me no carro e como um sopro assumem uma postura erigida, os nós das mãos esbranquiçam-se pelo esforço com que agarram a retorcida moca, a hombridade da existência não conhece condições e assoma-se ainda mais quando nada veste o corpo, ou a pessoa, além das vestes feitas para proteger o casulo carnal dos elementos circundantes. - Boa tarde meus senhores – digo-o por respeito, braço de fora da porta do car

A simplicidade florida

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“A simplicidade florida”, mais uma crónica do Nada publicada no Correio do Porto. Para ler a edição online, clique aqui . Aperto o pão nas mãos, faço um pouco de força e rasgo-o com o respeito que um ancião me merece. As migalhas caem petalamente, rodopiando, separando-se na criação divina e caindo-me, algumas, em cima. Esfrego as pontas dos dedos, solta-se um nevoeiro privado para o qual me faço convidado. A caneca gasta de uma cerâmica cansada onde o tempo bicou já algumas lascas, acolhe os vórtices que se formam, o do café onde a espuma da sua maré vagueia como que colectando as migalhas e a farinha poeirenta, e o meu vórtice, o desconexo movimento sensorial que me permite redemoinhar em direcção a um escuro, negro, imenso rasurado destino, por onde mergulho e me vejo sair sair do lado de lá do moinho. Claro, sozinho. Emociono-me com a simplicidade florida de quem nunca se viu viver a vida de espada erguida, saldando-se à consciência sem que Anúbis saiba, sequer, que Deus fez u

Contra a parede

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"Contra a parede", mais uma Crónica do Nada , no Correio do Porto. (online aqui ) A vida não aguarda a vida de ninguém. Talvez por isso saiba que, saídos contrafeitos do confinamento ou não, o monólogo invisível cacofonia-se e tem razão para isso. Todos os dias parecem ser o gaguejar do quotidiano numa tentativa de reiniciar um início que, pasmemo-nos, findou fadado que estava à nascença. Sem gaiola que nos molde o crescimento, a existência segue, ainda que com algum lamento, o trâmite normal de orbitar os dias. Acolho-me, assim, desde as manhãs frias, na presença que levo sob a redoma onde repousam, esparramadas, as nuvens cinzentas, alvas e as que, pelo pôr-do-sol, alaranjam o crepúsculo onde chego, agora. Arrasto os pés no cimento empurrando-me e escorregando-me pela amena superfície, a sorrir do que antevejo ser a queda por ter as mãos nos bolsos, mas não, ainda me assiste a capacidade de, tal como as sombras dos eucaliptos que ainda subsistem (ali acima, no som que

Intemporal

«Intemporal», crónica no Canal N . Paro antes da passadeira onde um peão sôfrego passa a correr fugido do medo e vejo, no fundo dos degraus do agora vazio Centro Comercial, um casal ao redor de umas seis décadas de semeadura, roupas datadas dum século transacto e sacos plásticos pelo cotovelo. Ele, no chão, afivela o capacete aberto, cinzento, cinzelado de uso, com uma tira de padrão escocês, puxando com firmeza sob o queixo para que não se solte o casco e vá cair, despencado, ladeiras da estrada abaixo. O descanso bípede alavancava a motorizada num movimento ondulatório, ora na roda dianteira, ora na roda traseira, que termina quando a esposa, em pé no último degrau, pousa na grade sobre o farolim ciclope semi-esférico vermelho, atrás do banco remendado, uma seira com um losango pintado de verde escuro, onde os vimes partidos confirmam a presença inexorável do tempo.  Talvez o meu suspiro seja mais lamento que enfado. Acordo com o buzinar ligeiro do carro atrás de mim