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A mostrar mensagens de abril, 2017

A chuva, sempre a chuva

Crónica, na Bird Magazine . Não pelo frio, que corre lá fora, mas pela memória de ver serpentear a espuma do café sob a negrura do líquido e dos dias, que me aquece as mãos em concha segurando a tigela.  Não pelo calor, que deslizará a seu tempo pelas paredes exteriores e interiores de um mundo físico, onde cada sombra terá a certeza de sobreviver até nenhum sol mais nascer.  Por onde, por que, porque, os dias e dias salpicados de cadências rítmicas que não soam, que não são. Há onde tu lá estás algum percalço que faça cair as estrelas quando tropeças nas etéreas obras que criaste?  Tenho por fundo o fundo, apenas. Está para lá, onde as memórias se enaltecem do futuro que ajudaram a edificar, mas cujo fruto nunca puderam saborear.  A cada passa um futuro, o potencial gravítico que me agarra ao planeta.  Como o adoro. O planeta. O futuro.  Terminarei ainda antes da música, mas mesmo que não tinam as pautas, mesmo que a filosofia me abandone e eu seja apenas um pensamento parado,

Planalto ressuscitado

Crónica de domingo, na Bird Magazine . O vento soprava quente, mas lá, sob as oliveiras, esse mesmo vento corria sobre nós, tapando e aquecendo-nos como um morno e invisível manto de serenidade. Era fácil ser feliz sem nada. As pequenas azeitonas colhidas pela natureza antes do tempo marcavam o chão, assemelhavam-se a pequenos botões verdes num acolchoado tecido usualmente parco de cores. Ficávamos ali contigo a olhar o céu, calados, o barulho do vento a fazer com que as folhas sussurrassem entre elas, o baque surdo de uma azeitona a cair.  Já todos nos perguntávamos sobre o que há para lá das estrelas, tu olhavas quem te perguntava com aquela profundidade de nos saber mais do que somos, sorrias e apenas contavas histórias de casa do teu pai. Dizias que havia por lá muitas moradas e que apenas nos sentíamos sozinhos porque não nos sabíamos encontrar ali, ou em qualquer outro olival, no silêncio que deveríamos aprender a calar. Nalguns momentos em que falavas de algo como se todos o

De mãos abertas

Crónica na Bird Magazine, em 09/04/2017. Olho para os meus pés e vejo-os virados para locais que não conheço, sinto pequenas mãos que me puxam vestes que não trago vestidas e quando eu mesmo olho as minhas mãos, assim, abertas, estendidas, com as palmas viradas para o chão, sinto que a Terra me tenta falar, deixo que o frio tépido me seduza e as pálpebras sucumbam a um sonho qualquer.  De que são feitas as minhas mãos? Invejo as mãos calejadas e toscas de quem trabalha no campo, na terra, na vida, as que limpam o suor da face quando o Sol lhes leva o cansaço, as que se metem nos bolsos furados e sem fundo, que apertam outras mãos nuas, sem ocasos ou eclipses, as que suportam vidas e cajados e carecem de carícias. As minhas mãos envelhecem comigo, percorrem teclas como quem salta de pedra em pedra numa lagoa descoberta por acaso. As minhas mãos lacrimejam quando sentem e estão assim, viradas para o mundo, com estrelas e letras, palavras que ainda não nasceram, tacteiam o escuro em q

Fruta engomada

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Crónica do nada, no Correio do Porto . É dia de feira, como sempre é quando não sei que é. Subo a avenida principal, a mesma que tantas vezes quis saber o nome e, ainda agora, não o sei. Creio não ser importante o nome pelo qual catalogámos, as ruas ou as pessoas, embora ache curioso que esta travessa se chame “Rua do Souto” e, do nome, apenas a minha imaginação pode andar por ali abrigada pelas sombras de uns castanheiros que nunca soube darem mais do que terrenos e casas miscíveis. Paredes tem nome de casa, de terreno entre lareiras de uma mesma brasa e, por isso, talvez me acolha quando decido deixar-me levar pela mão de quem me aquece o coração. A avenida, qualquer avenida, é feita de pessoas e eu que as tento colar à retina, vou atento a tudo o que seja gente e vento. Sorrio pela vaidade que se esvai e esfumaça quando se tenta ser o que as revistas trazem agarradas às folhas. Este mundo não parece ser para esfomeados de espírito.  As travessas parecem conduzir ao recinto da fe
Não sei se me emerges no preciso momento em que atravessas de vento soprado o caminho que nem sei trilhar.  A vida intrínseca ao viver apresenta-se labutada, entre regos estendida, como entregue a si mesma e, por isso, mais vida. Eis-me saltado no coaxar nocturno das pedras que ainda crocitam mornas, de regresso ao percurso onde as estrelas vêm beber à Terra a loucura dos dias que vamos semeando. O lento ressoar das escoras que sustentam o dia têm nome de serra, como um mar gigante, Marão.
Nada sucumbe mais. As encostas do Douro precipitam-se de amarelo polinizado e eu deixo de me surpreender. Cada curva sua sentença. A facilidade do desaprendido cultiva-me a paz. Talvez hoje, que não chove, surjas por detrás do tempo e arrastes contigo tudo o que ele traz. Mas agora, agora mesmo, no silenciado universo meu leito, escorrem-se as sombras veraneantes. Nada é como dantes. Os encimados claustros sem caminho. Vais longe, oh peregrino? A loucura pratica-se na paciência, a certeza de uma polaridade que se esconde sob um capitel, as valetas valetam gente a multidão sobre o demente, teremos em nós ainda uma divindade que se sente? Quis-me Deus homem e não fraga, e que faça eu, oh eterno, se me ausculto no enrugado granito que te pariu e te afianço pelos reflexos onde ninguém te viu?

O sorriso alimenta-se a si mesmo

“O sorriso alimenta-se a si mesmo”, ao domingo, na Bird Magazine . Gosto de ser surpreendido quando a surpresa se esgueira e me levanta a pálpebra da atenção trazendo o que muito bem entende, pensando que me vai fazer sorrir.  Gosto de ser surpreendido com boa música, com conteúdo, bem longe do que querem que ouça.  Só assim é possível alcançar alguma lucidez e calma.  Chamemos-lhe idade, crise, inconsistência, mas cansa, estou cansado, as pessoas dizem-se cansadas.  Ainda procuramos no cimo do caminho de terra, com a bola debaixo do braço ou a boneca presa ao peito, a chegada de amigos para jogarem e brincarem connosco. Agora, no final da rua, está apenas uma bicicleta e eu ainda espero, um dia, pelas gargalhadas e travessuras, por tempos em que nascia um sorriso a cada vento, um abraço a cada golo. Crescemos, sei-o, levo 41 voltas ao Sol e todos os dias me lembro que cresço, no entanto, a cada vez que olho para a bicicleta pergunto-me se crescemos nas direcções correctas, se