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A mostrar mensagens de novembro, 2018

Sulcos

"Sulcos", crónica de Domingo na Bird Magazine, para ler neste link ou aqui. Caminho nesta tarde cinzenta e húmida de Outono. Há momentos em que ao invés de calcar as folhas dos plátanos, arrasto os pés e vou deixando dois sulcos, como lentos carris, atrás de mim. Existe em nós algo narcisista, de cunho histórico, a presença que gosta de percorrer caminhos e deixá-los assinalados, como quem afirma: - Passei aqui. Algo semelhante ao que encontramos em todos os parques e locais públicos, mais ou menos frequentados, as vulgares frases “Eu estive aqui” ou o usual “Amor para sempre, de Joaquim e Joana”. Os nomes são inventados, não por mim, mas por alguém, eu apenas escolhi dois aleatoriamente e juntei-os naquela pequena frase, cicatrizada tumefactamente na face de uma madeira que já se cresceu árvore. Falava, ali acima, dos sulcos. Percorri uns metros e olhei para trás, o vento tinha levado já algumas folhas para tapar os sulcos, meus e de outros, há várias manias com os mesmos

Golo!

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"Golo!", mais uma Crónica do Nada no Correio do Porto, para ler aqui . Valorizo imensamente as conquistas do dia-a-dia, as coisas complexamente simples, como a pessoa que, à minha frente, para comprar uma sande-almoço vai olhando o preçário e as moedas que tem espalhadas na mão como uma constelação de estrelas baças refletindo a escassez, contando e escolhendo a sande-almoço à medida da carteira e não à medida da fome e da sua necessidade. Recordo outra vitória quotidiana que a vida me fez o favor de embrulhar e trazer na maré do horizonte abaixo do meu olhar, o mar salgado por onde entram as histórias não naufragadas. Há vários anos – pelas escolas primárias verdadeiras e térreas, brancas, espalhadas pelo país como ovelhas tresmalhadas nos prados, pastoreadas por nómadas professoras, antes de ordinais ciclos – enquanto trabalhava num projecto que me fez caiar a vida e o corpo no calor ameno de uma salamandra na sala de aula, onde se aqueciam botas, casacos molhados e leit

Pluviis

“Pluviis”, a crónica de Domingo , na Bird Magazine. Reinvento a chuva. Hoje traz-me a memória do abraço, a ombreira da porta, os pingos que se volatizam quando em contacto com o corpo de um outro ser. A chuva, sempre a chuva, eu, sempre eu. O apagado semáforo que teima em sair do tricolor destino, a rua fechada e um trabalhador abrigado sobre as memórias de dias mais coloridos. Olhos semicerrados, as gotículas aquosas de uma quimicidade que não se saber ser água. As costas encostadas ao húmido vestuário, um autocarro que passa prenhe de passageiros conduzidos pelo destino. O destino, sempre o destino. Sem que me deite ou levante, vou colidindo com os dias que teimam em chover. Um fio depois do outro, tal como os dias, um quadrado congruente com o ecrã onde são projectadas as imagens que desejam que conheçamos. Fútil, assim chamo à mediocridade de carácter, plausível de construir dias e eras de escravidão. Por isso, vou levando a vida empurrando este carrinho de mão, onde transporto a

Anagramas

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“ Anagramas ”, Crónica do Nada no Correio do Porto . São 23:32 e a capicua, o frio, o regresso a casa depois de vários passos pelo frio, junto com o barulho abafado do açúcar a cair na cevada traz-me a súmula de dias que, idos, de mim paridos, fazem-me sentir mais velho, acumulado no final de uma labuta que, quase nos finados, me relembra que quem apazigua não se pode dar à luta. Distraidamente, o céu permitiu-se a um momento de apaziguamento, quando se despregava o Sol pela parede do firmamento e o céu adquiria uma tonalidade rasgada em cor-de-laranja do lado do litoral e, lá para bandas dos montes e deles detrás, já noite, uma Lua grande, cheia, requeijada, com estrelas a cintilarem. Estes momentos, aliás, todos os momentos, mesmos os mais petrificados na eternidade passam rápido, amanhã o Sol fará o mesmo trajecto e eu, com os pés noutros solos, a solo, a cabeça, a soldo, no mesmo sítio, onde as nuvens são sorrisos claros, límpidos e puros, impolutos e eternos porque não existem,