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A mostrar mensagens de março, 2018

O ceramista nas palavras em brasa

“O ceramista nas palavras em brasa”, crónica de Domingo na Bird Magazine . As brasas dormem, sussurradas pelo imaginar do que poderá ter sido uma lareira nocturna, das que espreitam por detrás de um gradeamento que policia o salto aventureiro de faúlhas e das sobras dos crepitares eufóricos quando o lume os transmuta. À volta da mesa, redonda, o pó branco e grés reúnem-se esparramados no chão, esmagados por passos dados descalços, no cimento tijoleirado são exibidas as marcas do que parecem ser bailados de fantasmas, com os seus etéreos pés, sem direcção que se apresente viável apesar de se conhecerem todos os caminhos. Na parede olham-me miríades de vidrados, cobaltos e ruborizados ornamentos sucumbiram ao vazio do calor que verga, cimenta, endeusa e apascenta. Esta vida, por vezes, faz-se de uma madrugada lenta, o eterno despertar adiado para que nunca se saiba acordado. Quando o chá arrefece e deixa pairar o aroma da terra que pariu a folhagem, sobram as palavras em cavaqueira com u

Quando a poesia fechou os olhos

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“ Quando a poesia fechou os olhos ", crónica do nada , no Correio do Porto. Quando descemos para os calabouços, a luz trémula fazia prever um sombreado disforme nas paredes, quase como se nos pudéssemos mascarar de granito e darmos as mãos no escuro, onde as pedras se lamentam metamorficamente. Pé ante pé, os degraus soluçavam por baixo de nós e, pelos que vinham atrás, acima de nós também. Aquele caminhar, o descer à abóboda de um mundo ao contrário, parecia-me uma marcha silenciosa numa procissão de condenados, sobre nós o trovoar de passos de, deduz a minha imaginação, deuses que caminham pacientemente na esperança que a Natureza acorde os que adormecem ao Sol e sob nós o burburinho de uma Terra em ebulição e que nos faz sentir firmes, mesmo sobre um pequeno torrão. Afiançaram-me que seria poesia e eu sem nada saber procurava ao redor de mim, onde estaria ela? De olhos abertos, fazia pequenas rimas em formas de apontamentos, notas para mim mesmo, uma protuberância de existência

Asilo do conhecimento, num mundo de loucura

Texto incluído no " P rojecto P oesia& M usica e m l ugares p ouco R ecomendaveis" para o Arquivo Municipal de Penafiel. Engavetamos a liberdade na escolha de sermos presos. Primeiro os mais antigos, classificados por inutilidade, agrilhoados aos sentidos até não sentirem mais, eles, os sagrados, os profanos e os imbecis, a nós iguais. Os sussurros que ouvimos são memórias distantes, um tempo que, relativamente a ontem, veio já antes. O bater firme do metal ao fundo da gaveta, o sorriso papiresco e a morte esgrafiada pelo gume de uma baioneta. Já nada sucumbe, porque nada vive ou habita, em nós, em vós, nesta modorra maldita, neste silêncio que faz companhia aos mundos sós. Arquivado, o saber ocupa o lugar vago, o estorvo de uma vida com saber amargo. Caberemos ainda no dossier amarelecido onde suaves dedos nos moldam e pincelam os medos? De quando em vez, o olhar furtivo para dentro de um livro, o pousar terno e ameno de quem nos conserva, o calor humano sobre a rememo
Diz-me de que mundo pendes dir-te-ei a que universo pertences. Nada do que me soçobre poderá almejar mais que o orbitado eu, aqui em pé orando e Deus, ali, acordado porque não tenho mais ocasos para florir nem tu mais desejos por sorrir, olha-me fundo no desespero algures um braseiro aceso é tudo o que me ilumina toda a rosácea multicolor talvez borratada (o que nos faz o calor?) vai do fundo do destino ao início da sina.

O pouso da palavra, o voo da opinião

Crónica de domingo, à sexta-feira, aquando do lançamento da nova Bird Magazine. Conheci o Ricardo e concomitantemente a Bird Magazine no final da inauguração da exposição Alma Tua, no Ciclo Cultural da UTAD, no final de 2013. De telemóvel na mão, no pequeno gabinete da professora Olinda Santana, encostas do Alvão ao fundo e a minha imaginação a descansar, como uma pequena ave, nos ombros de mestre Torga, o estudante Ricardo direcciona uma entrevista para uma revista online, um blogue, um espaço de opinião e um sonho, tudo ao mesmo tempo. Naquele vinhedo de amadorismo, de um lado autores a contorcerem ideais em solo arável, mas infértil como se veio a verificar posteriormente (ah, este míldio político), do outro lado o entrevistador como uma casta que tenta vingar pelo factor correcto, a qualidade interior do que se tenta desconstruir no pensamento e pensar por si mesmo. O tempo passou, as caras facearam as imagens, as palavras afundaram-se no chão e as estações foram estacionando o

Talvez eu seja o barco

Crónica de Domingo, na Bird Magazine . "Talvez eu seja o barco" A solidão molda-nos a companhia. Transporta-nos para aquilo que não desejamos transportar, apenas e só porque não nos sabemos caminho, nem caminhantes, apenas fugazes, esbaforidos, errantes. A solidão molda-nos a alegria. Como agora, quando a chuva bate no vidro e eu encho o peito, faço de conta que me escondo atrás do pinheiro, sinto a áspera casca e cheiro as recordações de arrancar, na ignorância, aquelas espessas crostas, raspá-las numa pedra e moldar rombudamente um casco de um batel, um barco tímido que soltamos no primeiro regato que nos aparece e vamos, correndo, andando, ao sabor da corrente de um aguaceiro que se faz chuva premente, até vermos felizes no bom rumo de algo que nos saiu das mãos e só aí, no despertar daquele rasto de vida que cai e ao chegar ao horizonte se esvai, percebemos que estamos encharcados, esvaídos em felicidade que chove por fora e pinga por dentro. A solidão molda o que nos