Mensagens

A mostrar mensagens com a etiqueta Correio do Porto

Verão

Imagem
Verão  Nova crónica na minha secção "Crónicas do Nada", no Correio do Porto. O calor acomete-se a quem, de véspera em vésperas de dias por vir, se inunda dos pretéritos que ainda não chegaram à margem do tempo presente. O tempo ausente banha os veraneantes, a contas com protecções dérmicas, bronzeados imigrados de uma tez que não existe. A irrealidade é vivida de publicação em publicação, a leitura pulula de comentário em comentário. A curiosidade inócua intromete-se na realidade da existência irreal que nasce nas leiras dos comentários, comentados entre comentários e figuras animadas de sorrisos e palmadinhas nas costas em forma de corações. O quão mais natural seria a voz, ainda que envergonhada, desabituada, proferir o que o coração muitas vezes quer dizer, mas por falta de prática não o sabe fazer. São férias, senhor, diria um espírito mais compassivo e ausente frequentador de orbes tão densos como este terceiro planeta a contar do astro rei. Enquanto ardem as labaredas ...

Arraial

Imagem
"Arraial", para ler no Correio do Porto , na secção "Crónicas do Nada".    Fora do silêncio, tudo parece ficar para trás, com excepção do verdadeiro, pois não há memória de mentira que nos adiante o passo, além da falácia de sermos mais uns do que outros. Ou menos. Que não iguais. Com o avançar da idade, a estrada à nossa frente parece enrugar-se e recuar num destino que, apesar de cada vez mais perto, esconde-se atrás de cada novo sonho urdido. Ao presente que nos presenteia a existência, acometem-se as sonoridades de tempos em que os arraiais eram menos fartos em néon. Na avenida cortada ao trânsito automóvel, transeuntes de vestes humanas passeiam-se desnudos, gastos e menos gastos na vida. Uma matilha de cães de peluche, num irritante estridente ladrar metálico, mexem automaticamente as pequenas patas desarticuladas numa corrida desenfreada sem sair do lugar (ou a tecnologia a imitar a humanidade). Ao fundo da rua cortada longitudinalmente pelo canteiro central ...

Um café e uma nata

Imagem
“ Um café e uma nata ” ou nova crónica na minha secção Crónicas do Nada no Correio do Porto . Enquanto miro os reflexos difusos na montra do café, fugindo às conversas fúteis do noticiário matutino, vejo-o chegar num imaculado verde trajado sobre um corpo adulto, numa mente infantilizada, virgem, onde não habitam as fraquezas de outros. Sopro a espuma da meia de leite, mais para disfarçar a atenção do que propriamente preparando-me para sorver o vício lácteo imiscuído entre o café, um pouco como eu e a fé.  Quando a porta se abre, os sons pueris saltam da piscina e das toalhas à sombra prévia do Sol abrasador. A confusão assíncrona abafa o noticiário e, apesar do incómodo hertziano de ondas sonoras em diferentes timbres, sinto-me mais liberto da programação noticiosa (infecciosa?) e acabo por sorrir, escondido. Ao chegar ao balcão, a familiaridade da funcionária num português açucarado, atira um bom dia em forma de animado: – É um café e uma nata? – já com o produto pronto em band...

Imagem
“Fé”, a mais recente crónica no Correio do Porto, na minha secção "Crónicas do Nada". https://www.correiodoporto.pt/prioritario/fe-2 A manhã da Póvoa tinha dado à costa uma neblina fresca, transpirando salpicos de maresia a cada passo ao longo da linha da praia. As lojas dormitam na manhã de feriado, a liberdade ainda não saiu à rua, faces sonolentas passeiam pequenos canídeos e uma sorridente funcionária camarária varre a baixa parede que serve de degrau aos mais impacientes, longe que vêm os degraus para o areal.  Do outro lado da avenida, um ou outro estabelecimento abre as portas aos funcionários, tez asiática, um mundo de igualdade a quem procura liberdade, que vão conversando em voz alta com a invisível e incompreensível língua que ecoa no auricular. Mesmo à distância de um hemisfério, o estrangeiro pode fazer-se lar. Movimentos rítmicos e bem ensaiados à luz da prática limpam as vitrines viradas para o Atlântico. Com a ignorância de saber ao que me voto, na democrática...

Lugar de Carlão

Imagem
"Lugar de Carlão" , nova crónica no Correio do Porto, na minha secção Crónicas do Nada . O povo já era próximo antes das uniões de freguesias que nos trouxeram proximidade toponímica, mas não afastaram o abandono que grassa nos patamares oliveirescos onde crescem olivas por entre o abandono. Toda a terra nos quer seu dono. Ainda que sobrem por lá ruínas e promessas de escombro, a memória não escolhe onde criar raízes, sejam elas ausências tristes ou lembranças felizes. O largo estreito da aldeia no lugar, ou lugar da aldeia, vai vendo as casas desfalecerem à passagem do tempo. No balcão da loja há um puto que serve água em vez de bagaço, coisas da mocidade, que despertará uma boa gargalhada quando ela, a idade, surgir cinquentenária por sobre os nomes que se vão gravando nas lápides. Em muitos locais, só no cemitério cresce população. E mesmo aí, os montículos de terra, as jarras erodidas pelo vento, o verde do musgo crescido no interior das águas estagnadas, alimentam peque...

Secundária

Imagem
"Secundária", crónica publicada na minha secção "Crónicas do Nada", no Correio do Porto [ aqui ]. Enquanto desço a rua no passeio cinzento e me desvio, a sorrir, de namorados adolescentes em descobertas não lectivas ou lecionadas, oscilo na recordação do que me leva à minha antiga escola secundária de Baltar e na preocupação com o ter colocado, ou não, todos os livros na mochila e evitar uma desnecessária falta de material. Não há meninas ao largo e, assim, a vergonha passa também para dentro do saco. Sigo confiante. O portão está aberto, mas a educação imobiliza-me, enquanto coloco a mão no bolso de trás à procura do cartão de estudante. Do lado de lá do postigo, perguntam-me ao que me dirijo com uma solenidade dedicada, apenas, aos adultos externos à comunidade escolar. Acordo. Claro! Que patetice! Apercebo-me dos acumulados trinta anos de tamanho que me fizeram crescer além da última visita, ainda estudante formal, à minha outrora estreada escola secundária, ...

Reunião

Imagem
“Reunião”, resumos dos encontros adolescentes em vida de adulto na minha mais recente crónica no "Correio do Porto". https://www.correiodoporto.pt/prioritario/reuniao – Vais escrever um poema? – perguntam-me em tom divertido. A pergunta rasga-me a abstração e o anotar mental dos esquiços em palavras que me vão fugindo da memória. Retorno ao jantar e continuo a sorrir num misto de envergonhado e divertido. A funcionária bamboleia as travessas de carne semi-crua e quase morna, a travessa e a pessoa, pousando-as nas toalhas de papel onde a matemática assíncrona do filete cerâmico desenha circunferências de gordura com diferentes diâmetros. Até aqui, a matemática circunscreve-me aos tempos adolescentes, entre perguntar-me para que raio necessitaria daquilo para o meu futuro e o responder-me, volvidas décadas, o quanto o caos se cria em padrões cristalinos, numa espécie de linguagem que permite compreender a sombra do grafite caído do lápis infinito na caligrafia do Criador. Com o...

Alambique

Imagem
"Alambique", uma crónica destilada no Correio do Porto, na minha secção Crónicas do Nada. [ https://www.correiodoporto.pt/prioritario/alambique-2 ] Encostado ao ladrilhado falso de cimento armado os blocos unem-se na parede que segura os dias vazios e o frio esgueira-se por entre o telhado de zinco, sem reparar que a porta aberta convida qualquer um, inclusive a tristeza, a entrar e acolher-se ao sossego de uma madrugada fresca, agora que a Terra Quente esfria, modorrenta, à espera do Inverno. No equilíbrio ténue dos dias avançados e sobre o funil azul, os dedos bolbosos de quem nasce da terra e sabe, por inerência do destino a quem se permite viver acima dos quotidianos mundanos, que à terra o seu torrão carnal voltará, seguram o cálice sagrado que acolhe o destilado, já depois da ascensão aquecida da caldeira e a queda condensada ao longo da serpentina de arrefecimento.  – Vai um copinho? Vai um copinho? – pergunta dupla, n um eco mental que reverbera sem resposta habitual,...

Procissão

Imagem
“Procissão”, crónica do Nada, no Correio do Porto ( aqui ).   Movendo-se na modorrenta passada do mais pequenito anjo, o longo préstito atrasava-se ao toque alternado de caixa da banda de música, cujos integrantes saíam protegidos na sombra das tiliáceas. Uma guarda de honra de arcanjos e santidades pendurava-se nos candeeiros da rua, devidamente suportados nos patrocinadores da festividade, enquanto as instalações sonoras anunciavam uma panóplia de empresas dos mais variados serviços e produtos.  O atraso obriga-me a mirar o chão, exploro as sombras que, em fadiga, se deixam pisar por quem pouca luz vê, protegendo-me, ligeiramente, do tórrido calor. Descansando sob as calosidades de pés femininos escanhoados e dedos disformes, envergonhados, empoeiradas sandálias líricas, no contraste com as encardidas unhas humanas, competiam com úngulas equídeas de humildade, por entre rebentos de glória de quem não se sabe feliz, porque não lhe sabem o valor, mesmo não tendo ela preço....

Minuto de silêncio

Imagem
"Minuto de silêncio" Crónica do Nada, no Correio do Porto . Saímos de casa no frescor da fina matinal chuva transpirada pelo Verão. A ansiedade barbeou a face de véspera e há uma espécie de sensação de regresso ao local onde estarei quando chegar, apesar de já lá estar. Com a viagem realizada em caminhos alternativos, a atenção vira-se para novos deltas, plantações esverdeadas do que não conhecemos, toponímias distintas que nos fazem gargalhar, na simplicidade jocosa da linguística e do equilíbrio entre o calão e a imaginação. O local de encontro, para os acompanhantes, ladeia-se de árvores e piso esverdeado, mas os mancebos septuagenários, que se reúnem novamente, estão numa ensolarada parada ou à entrada da camarata do batalhão, sem toque de recolher. A vida foi macerando de forma distinta aqueles que comigo se cruzam. A passagem do tempo esculpiu-me, geneticamente, em similar busto do meu pai, talvez por isso alguns o afirmem perguntando-me se sou seu filho. Outros reencon...

Nome

Imagem
“Nome”, mais uma crónica do Nada (que não consigo deixar de escrever), publicada no Correio do Porto ( aqui ).   Com o amanhecer de Domingo, o Maio anuncia-se nos meus joelhos doridos da neblina. O Café vai tendo as mesmas caras conhecidas, o balcão aquece-se nos braços de fora das mangas curtas. A máquina do tabaco informa o preço do vício a quem conta os trocos para saciar os que fumam por eles, a cada um seu mal, mais uns passos arrastados na lama do umbral. “Era uma cerveja com favaios”, o tom forte e arrastado de uma voz endurecida ao Sol, na vida, “Se faz favor”, na educação que ainda se cultiva em terras rurais. A face conhecida coloca-se à frente do nome e, por não me lembrar dele, não o saúdo como queria. Sou mais velho em grãos de terra sob os pés, mas parece ultrapassar-me na tez negra, queimada, de quem constrói para que outros usufruam. Muitas das vezes, a custo de uma subvalorização a que se acostumam, na maioria, os que se julgam superiores aos outros. Encosto-me às ...

Geografia

Imagem
“Geografia", felizes encontros na minha secção Crónica do Nada , no Correio do Porto. Estaciono sob os chilreios floreados de plantas que desconheço, atrás do gradeamento que sorri metalicamente com as brincadeiras dos miúdos na hora do intervalo entre aulas. Está o planeta, pelo menos neste hemisfério, na Primavera, assim como a canalhada, floreando, sem grandes preocupações com os Outonos futuros que lhe trarão tonalidades acinzentadas. Aguardo à entrada que me atendam. A porta aberta ao público obriga-se a controlar fluxo de entradas e saídas, o progresso chega a todo o lado. Contei vários equinócios de Março, já, no entanto, vejo-me sempre criança à porta de uma escola, como se o tempo me conhecesse apenas agora, miúdo, sem nunca saber fazer-me graúdo. Envergonhado, vou percorrendo memórias de Abril por quem nunca as viveu, senão pelos cravos dos livros de História. Escondo-me atrás da aparência adulta, rodeiam-me sonoridades e trinados que sobem e descem patamares, degraus, a...

Salgueiros

Imagem
 “Salgueiros”, um retorno às origens, na minha Crónica do Nada, no Correio do Porto . À saída da VCI e longe dos holofotes habituados a iluminar noites de futebol azul e branco, as rotundas rotundadas convidam a enganar-me, falheiro que sou de trajectos urbanos, agora que me quero cada vez mais rural, plantado talvez àquilo que de mim me espero, um punhado de sementes de nada e um plantio fútil daninhando os jardins efémeros que são os milhões de anos à sombra de um Sol cansado, ainda que adolescente. Estaciono ao largo do Cerco, por entre pequenos paralelos perdidos por qualquer enxurrada ou calceteiro menos pródigo a arrumações graníticas. O céu cinzento assusta tanto quando o aviso de quem, mais à frente, convida a não deixar nada à vista dentro da viatura. A vantagem de nada ter, é mesmo o facto de nada me poderem roubar. Não termino o raciocínio e já uma saraivada localizada abre alas a uma matiz brilhante da manhã que espreita por entre os gradientes cinzentas do firmamento. ...

Brasão

Imagem
“Brasão”, crónica no Correio do Porto , na minha secção " Crónicas do Nada ". As estradas, quando não nos levam aos locais que conhecemos, serpenteiam por entre localidades onde somos estrangeiros. O desconhecimento acaba por pincelar as serranias de verde onde o cinzento urbano já nada nos consegue colorir. Enquanto saboreio a viagem, curta, por não saber onde estacionar com o cuidado e zelo em não estorvar ninguém, um pouco como aprendi a fazer na vida, galgo a imaginação debaixo dos toldes e oleados da feira, assente no revitalizado mercado do Couto. Já por lá não andam damas e cavalheiros, cavaleiros e futuros reis conquistadores e guerreiros. Agora, pijamas cardados espreitam por debaixo das abas das calças desportivas, talvez saboreando a manhã fria sem que a riqueza dele se ria, repousando na chinela de plástico moldada por uma máquina gélida e cansada, em oriental escravidão laborada. Do lado de lá da estrada, o lado de cá de quem por lá está, cigarros consomem fumado...

Paz, o quão difícil pode ser, rapaz?

Imagem
“Paz, o quão difícil pode ser, rapaz?” ou mais uma Crónica do Nada , no Correio do Porto. No olhar embaçado do meu pai encontro o reflexo das sanzalas, picadas, regatos coloridos de peixes futuros e uma terra que paria abundância com a facilidade dos sonhos mancebos em terras distantes, separadas por um oceano nauseado em porões defecados por animais e o medo do desconhecido pelos umbrais. O empoeirado estacionamento separado do restaurante onde seria o convívio avivava a ansiedade. A viagem sulcada em toada serena amanhecia junto com o dia de sobriedade amena. Subimos a escadaria do moinho, sorriem vigorosamente do fundo de uma vida envelhecida, rodeando uma távola circular, cavaleiros do ultramar. Nas minhas feições reconhecem os traços de quem me cedeu a genética, confundem-me com o Velhinho, sorrio da situação, bebo um café rápido e chamo a restante comitiva familiar, em terra alheia, amigos estranhos transformam-na em lar. Com a cavalaria a caminho, cumprimento quem do nada me cha...

Lanterna

Imagem
"Lanterna", a mais recente crónica do Nada no Correio do Porto . Ao cimo das escadas, o andor era solenemente enfeitado com a gordura condensada da fritura das rabanadas. O odor ameno a canela e açúcar amarelo, depois de embeber o cacete fatiado, adornava o resto do tecto que, por entre as marcas da humidade persistente, espreitava feliz para a estrela encimada na crista do petiz pinheiro de Natal. Resinoso ainda, adormecido entre os musgos arrancados com as mãos em fartos tufos às húmidas costas da pedreira, sacudia orgulhoso as luzes intermitentes que projectavam um firmamento iluminado do espectro visível de cada vez que se desligava a luz do candeeiro da sala, junto com pinhas e bolas de chocolate embrulhados no acetinado papel colorido, prateado, antecipando o adocicado travo na boca quando se deixa derreter o cacau com todo o tempo que a infância encerra.   Duas ou três travessas, atravessadas num canto da mesa da sala, sobre a toalha vermelha e branca, estampada com dó...