Verão
Verão
Nova crónica na minha secção "Crónicas do Nada", no Correio do Porto.
O calor acomete-se a quem, de véspera em vésperas de dias por vir, se inunda dos pretéritos que ainda não chegaram à margem do tempo presente. O tempo ausente banha os veraneantes, a contas com protecções dérmicas, bronzeados imigrados de uma tez que não existe. A irrealidade é vivida de publicação em publicação, a leitura pulula de comentário em comentário. A curiosidade inócua intromete-se na realidade da existência irreal que nasce nas leiras dos comentários, comentados entre comentários e figuras animadas de sorrisos e palmadinhas nas costas em forma de corações. O quão mais natural seria a voz, ainda que envergonhada, desabituada, proferir o que o coração muitas vezes quer dizer, mas por falta de prática não o sabe fazer.
São férias, senhor, diria um espírito mais compassivo e ausente frequentador de orbes tão densos como este terceiro planeta a contar do astro rei. Enquanto ardem as labaredas de um atiçado esquecimento, propositado, famílias reúnem-se sob sombras de toldes afogueados, toalhas quadriculadas estendidas em areais sedimentados, avaliadas garrafas transpirando ao braseiro de Agosto aguardam pelo esquecimento que carregam quando ebriam quem as esvazia. Era isto que o calor queria. O preço etiquetado a cada pessoa vazia.
Ao fundo, um pai, num regato salgado, capitaneia as corridas animadas da prole sarapintando os passos infantis na água. E só por eles, a recordação do ribeiro onde aprendi a nadar, escorre lânguida na minha memória, sob os alfaiates que costuravam a água, levando no ventre pequenos peixes que se amontoavam quando vislumbravam um vulto na margem fértil, deitado na relva, escondido nos já inexistentes milheirais, a estender a mão e mergulhá-la na água fresca, por entre as raízes dos marmeleiros que iam beber ao ribeiro.
Caminhantes percorrem os passadiços modernos de esvaziados financiamentos. Diversas idades acumulam dias às travessas corroídas pelo salitre. Apoio-me a mim, porque a corda que fazia de corrimão foi decepada. No final, uma plataforma de betão, onde se incrustou uma biblioteca veraneante, abre caminho para outra passagem de madeira. Pelo meio, uma voz pós-adolescente vocifera entusiasmo aos banhistas resistentes, sexagenários, que tentam movimentar aquilo que a idade já aconselha a parar.
A tarde sobe ombro a ombro com a afogueada temperatura. As garrafas esvaziam-se mais depressa na ânsia de apagar o lume interior e que traz, na maioria das vezes, dor. A ganapada corre despreocupada e alheia aos avisos coloridos de uma vida monocromática. Soubessem eles que os mais velhos esperam que se tornem, também, adultos, devidamente amparados na chancela da indumentária, na valorização dos benefícios trazidos pela patente, tudo o que os faça subir um degrau acima dos outros, numa escada descendente onde se agarra quem não conhece o seu devido valor. E quem não soube alçar-se sobre o que outros aguardavam, escuta o ostracismo na invocação de ausentes, incapazes, os presentes, de correrem para além da manada que corre solta dentro da sua própria prisão.
No final da tarde, as ondas, sozinhas, deixam-se cair de costas nas rochas iodadas, murmurando o canto das sereias que apenas os sonhadores escutam, habituados, talvez, a navegarem em mares de silêncio e, no ruído das correntes, escutar o que das estrelas emana, na compaixão da condição humana.
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