Arraial

"Arraial", para ler no Correio do Porto, na secção "Crónicas do Nada". 

 

Fora do silêncio, tudo parece ficar para trás, com excepção do verdadeiro, pois não há memória de mentira que nos adiante o passo, além da falácia de sermos mais uns do que outros. Ou menos. Que não iguais. Com o avançar da idade, a estrada à nossa frente parece enrugar-se e recuar num destino que, apesar de cada vez mais perto, esconde-se atrás de cada novo sonho urdido.

Ao presente que nos presenteia a existência, acometem-se as sonoridades de tempos em que os arraiais eram menos fartos em néon. Na avenida cortada ao trânsito automóvel, transeuntes de vestes humanas passeiam-se desnudos, gastos e menos gastos na vida. Uma matilha de cães de peluche, num irritante estridente ladrar metálico, mexem automaticamente as pequenas patas desarticuladas numa corrida desenfreada sem sair do lugar (ou a tecnologia a imitar a humanidade). Ao fundo da rua cortada longitudinalmente pelo canteiro central decepado de árvores, o palco ilumina a noite, com o formato imaginado duma espécie de estufa escura onde crescem luzes e se evaporam cânticos. Talvez o vegetal motivo floresça devido às sonoridades celtas ensaiadas na quinta de um tal Sr. Guilherme.

Continuo o caminho, absorto, pela noite fresca contrastada nas roupas parcas das adolescentes. Uma buzina acorda os peluches gigantes suspensos e agita-me na divagação. Um guarda-redes de madeira rodopia umbilicalmente no meio da baliza e, a meu lado, uma criança pede ao pai se pode gastar ali a moeda de um euro. Passo, lateral e anonimamente, por alguém que reconheço, envelhecido em comparação com a fotografia da comunhão solene que transporto no telemóvel, segurando pela mão um catraio que aponta para um boneco azul extraterrestre.  Já no palco, exultam-se outros filhos, os da nação, enquanto mãos no ar saltam como se procurassem agarrar alguém num céu demasiado alto ou tentassem, de alguma forma, tocar as recordações de décadas decorridas, vividas umas, perdidas outras, escorridas ainda algumas para o fundo de uma garrafa.

As memórias incógnitas sonhadas quando alguém, quem sabe eu, era pequenino e ainda mal abria os olhos, ecoam em grito selvagem, indígena, na natureza agreste da desenvoltura dos dias pacatos e sorridentes, apesar de tudo. Quem nunca se soube vivo, passou pela música sem a escutar e embrenha-se, eventualmente, na obrigatoriedade de ver o filho num coro, sorriso na face, a dançar à melodia musicada das palavras que não se tem vergonha de o dizer.

Da mesma forma que não vi passar por mim a soma dos dias, o concerto do arraial desaguou rápido e em torrente num estuário emotivo de olhares fraternos orgulhosos e saudosos. Um cardume de músicos adolescentes brilhava com o olhar a cada flash fotográfico, eternizando o momento na noite.

E eu, sabendo ter o mundo a meus pés à espera que o empurre, questiono-me onde colocar os passos quando me vejo no reflexo do acrílico da roulotte das farturas e percebo que os sorrisos são leves e o silêncio é, na maioria das vezes, tudo o que tenho a dizer e rimar, mesmo sem falar.

 


 

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