Um café e uma nata
“Um café e uma nata” ou nova crónica na minha secção Crónicas do Nada no Correio do Porto.
Enquanto miro os reflexos difusos na montra do café, fugindo às conversas fúteis do noticiário matutino, vejo-o chegar num imaculado verde trajado sobre um corpo adulto, numa mente infantilizada, virgem, onde não habitam as fraquezas de outros. Sopro a espuma da meia de leite, mais para disfarçar a atenção do que propriamente preparando-me para sorver o vício lácteo imiscuído entre o café, um pouco como eu e a fé.
Quando a porta se abre, os sons pueris saltam da piscina e das toalhas à sombra prévia do Sol abrasador. A confusão assíncrona abafa o noticiário e, apesar do incómodo hertziano de ondas sonoras em diferentes timbres, sinto-me mais liberto da programação noticiosa (infecciosa?) e acabo por sorrir, escondido. Ao chegar ao balcão, a familiaridade da funcionária num português açucarado, atira um bom dia em forma de animado:
– É um café e uma nata? – já com o produto pronto em bandeja invisível de simpatia, ornamentando o balcão de negro granito, fumegando ainda o café sem açúcar.
– Hoje não, quero variar! – respondeu no animado e educado tom de quem da vida sabe o suficiente para cuidar dos canteiros, ervas, sebes e folhas o melhor que pode e permite o braço bom.
A funcionária, nublando o esgar de sorriso, preparava-se para recolher o café e a nata perante o olhar dos outros clientes, num arrependimento sincero de que nem sempre vale a pena sermos simpáticos, antecipando os pedidos ainda que aos menos perdidos.
– Hoje quero uma nata e um café! – rindo-se do alto da criança adulta em trajes camarários e colocando a mão, do braço mais útil, sobre a mão da funcionária do café que se preparava para recolher o pedido e responder a outro que não o usual. Houve um sorriso sincero, um reconhecimento despojado das vestes que se escondem a outros que nada sabem vestir além do preço (ou logótipo) que as cobrem nuas.
– Você… – respondeu a garçonete (ora aqui está algo que não ouço há algum tempo) e deixou-o levar o café, a nata e o calor da manhã que galopa cedo sobre a envergonhada neblina matinal e, pacientemente, o aguardava do lado de fora do café. O calor, o mundo ou talvez Deus, tem guardado uma brisa fresca à sombra para os que se sabem filhos seus.
O riso gargalhado preenchia as, seguramente, mais de quatro décadas de existência terrena sem ambição acima, realmente, daquilo que lhe atribuía o silêncio numa vida serena. Os jardins esperavam-no, dia após dia. E ele, criança grande, sorria. Deixou o café e o prato da nata no balcão, pagou e, sorrindo – Vou-me indo ao que sou! – e seguiu pelo café, sorrindo, pé ante pé.
No reflexo embaciado dos meus olhos emudecidos, apercebo-me que a meia de leite arrefecera e, apesar da manhã primaveril, o dia em mim anoitecera. Os olhares displicentes toldavam as falas que anotei, o melhor que podia, entre o que me permitia a realidade e a fantasia.
No silêncio permitido entre a prosápia vaga da manhã, olho com carinho o caminhar assíncrono do homem, sorvo o que me resta e remato, escondido, Ámen.
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