Royal mile

Royal mile, crónica no Correio do Porto.

A Royal mile estende-se preguiçosamente, esquecida quase que está pelo calcorrear maléfico das altezas reais que de gente fez degrau e, abaixo e acima, fazia do povo sina. O vento corre seco e frio, traz-me ao ouvido recordações caledónias e o sussurro de uma gaita-de-foles, espremida no regaço quente dum puto, cara de sonho, sorriso de vida, onde cada libra vale 15% para outros putos cujo cancro coloca cara de dor e sorriso de esperança no dia seguinte e mais 15% para aqueles que não se conseguem lembrar da própria vida.
As paredes dos prédios tornam o negro ainda mais agreste e a multidão faz-se maré de um mar que não parece saber para onde caminhar. Os cheiros oscilam entre o conhecido puritano e o inolvidável sagrado, de vidas distintas e épocas remotas, acometidas para o presente que se imiscua com todos os tempos, agora que o próprio tempo parece deixar de correr para ser sempre hoje.
É quase noite, o cachorro levanta preguiçosamente o sobrolho e fita-me com pena, parece-me. Não o censuro, sobre um solo erguido sobre lava, está deitado junto ao dono, debaixo do que parece ser um saco cama, ou várias camadas de sacos cama. O mendigo parece-me mais novo do que eu. Olha-me a sorrir quando deito umas moedas no copo cheio de nada, ainda com a sombra do logótipo da Starbucks, onde ironicamente está escrito “Dreams”. Pisca-me o olho e segue o seu caminho, sentado, espreitando para dentro da história do grosso volume de “Guerra e Paz”, convidando-me a seguir o meu caminho, Royal mile abaixo, assobiando mentalmente qualquer melodia que penso ser escocesa.
O dia escureceu na totalidade agora que o Sol, a esta latitude, se foi embora cansado e a noite surge com mais esplendor porque a multidão se recolhe e embriaga sob luxuriosas luzes falsas. Sem gente, as ruas tornam-se mais vívidas, habitadas apenas por quem foi esquecido, na vida e na morte e, por isso, sem recordações que sombreiem, iluminam a noctívaga vontade de ser estrela. 
Volto ao local onde o vi, desabrigado, a ler e arrisco um início de conversa. 
– Sem abrigo? – pergunto em inglês, aninhado à sua frente e sob o olhar avaliador do canídeo.
Marca a página com o dedo enluvado, muito perto do fim do livro e ergue-me um olhar sorridente, calmo e compreensivo. Com o braço descreve um arco sobre a cabeça dele e olhando para o céu nocturno, mais visível agora, responde-me com nova pergunta. 
– Que outro abrigo além das estrelas? 
Trocamos um olhar montanhoso. Aponto para a capa do livro e pergunto, sem vontade de ir embora.
– Pronto para a guerra?
– Não amigo, pronto para a paz.
E sorrindo ainda, colocou um recorte de jornal a marcar a página, fechou o livro, aconchegou o cão debaixo do braço, puxou o saco-cama para o pescoço e fechou os olhos alheio ao barulho que vinha do bar duas portas acima.


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