De que vale o silêncio se ninguém o escuta?
Crónica de Domingo, na Bird Magazine.
Seria, provavelmente, capaz de partir a pé por esses caminhos fora.
Não é à toa que vagabundo rima com mundo.
Acabo por cobiçar o sorriso desligado da alegria que vejo nalgumas faces, cobertas por barba, em corpos que não se inibem em deitar num banco de uma estação de comboios.
Indiferentes ou talvez não, ao lixo acumulado na linha, nas metades de tonéis que nunca o ambicionaram, mas são agora recipientes onde descansam em paz acalorada várias garrafas de plástico de líquidos que são caras formas de se beber má água.
O átrio da estação está vazio.
O calor convida a uma estada prolongada num velho banco de madeira.
A poltrona amarelada olha de soslaio.
Coitada, não percebe que aquele tecido empoeirado não convida a que alguém, mais ou menos incauto, se sente ali.
As horas passam devagar quando olhamos para o relógio, antigo, a olhar com cadência do alto da coluna de madeira.
Basta desviarmos o olhar para ele desatar a correr de ponteiro em ponteiro, este tempo atribulado.
A vida há muito saiu dali.
Os azulejos que ornamentam o edifício escorrem saudade.
Acaricio a face de alguns dos trabalhadores e trabalhadoras retratados.
Algumas aves fizeram o favor de ornamentar os azulejos, mas isso não me inibe de afagar o dorso de um touro, calculo que esteja cansado, mas afinal parece ser apenas solidão. É normal.
Outrora vibrante, a estação resume-se a um só funcionário, escondido numa redoma, rodeado de um ecrã, teclas, papeis, códigos QR.
Longe vai o tempo de o senhor com o balde e a pinça de metal na mão, a apanhar o pouco lixo que existia.
Agora tudo parece ter lixo, restolhos mal cheirosos.
Até as pessoas mudaram, outrora pessoas bem cheirosas, em corpos mal cheirosos, agora pessoas mal cheirosas, em corpos bem cheirosos.
Tudo muda.
Até o silêncio, que parece ter descido sobre vários apeadeiros, despindo-os de telhados, partido vidraças, apodrecido vigas de madeira em profunda raiva pelo que de mal nós lhe fizemos.
De que vale o silêncio se ninguém o escuta?
Vou percorrendo o caminho com o olhar no trilho, claqueio mentalmente o som das rodas sobre os carris.
Dói, não sei bem o quê e por isso tão difícil se torna diagnosticar, mas dói sempre e cada vez mais ao observar o abandono de tudo o que foi.
Acredito que as memórias perduram e resistem abandonadas apenas para que possamos sentir que, de facto, quando ao futuro chegarmos vermos que o que deixamos abandonado encerra a parte de nós que não deveríamos ter esquecido, o reflexo da nossa face na superfície da vida.
Seria, provavelmente, capaz de partir a pé por esses caminhos fora.
Não é à toa que vagabundo rima com mundo.
Acabo por cobiçar o sorriso desligado da alegria que vejo nalgumas faces, cobertas por barba, em corpos que não se inibem em deitar num banco de uma estação de comboios.
Indiferentes ou talvez não, ao lixo acumulado na linha, nas metades de tonéis que nunca o ambicionaram, mas são agora recipientes onde descansam em paz acalorada várias garrafas de plástico de líquidos que são caras formas de se beber má água.
O átrio da estação está vazio.
O calor convida a uma estada prolongada num velho banco de madeira.
A poltrona amarelada olha de soslaio.
Coitada, não percebe que aquele tecido empoeirado não convida a que alguém, mais ou menos incauto, se sente ali.
As horas passam devagar quando olhamos para o relógio, antigo, a olhar com cadência do alto da coluna de madeira.
Basta desviarmos o olhar para ele desatar a correr de ponteiro em ponteiro, este tempo atribulado.
A vida há muito saiu dali.
Os azulejos que ornamentam o edifício escorrem saudade.
Acaricio a face de alguns dos trabalhadores e trabalhadoras retratados.
Algumas aves fizeram o favor de ornamentar os azulejos, mas isso não me inibe de afagar o dorso de um touro, calculo que esteja cansado, mas afinal parece ser apenas solidão. É normal.
Outrora vibrante, a estação resume-se a um só funcionário, escondido numa redoma, rodeado de um ecrã, teclas, papeis, códigos QR.
Longe vai o tempo de o senhor com o balde e a pinça de metal na mão, a apanhar o pouco lixo que existia.
Agora tudo parece ter lixo, restolhos mal cheirosos.
Até as pessoas mudaram, outrora pessoas bem cheirosas, em corpos mal cheirosos, agora pessoas mal cheirosas, em corpos bem cheirosos.
Tudo muda.
Até o silêncio, que parece ter descido sobre vários apeadeiros, despindo-os de telhados, partido vidraças, apodrecido vigas de madeira em profunda raiva pelo que de mal nós lhe fizemos.
De que vale o silêncio se ninguém o escuta?
Vou percorrendo o caminho com o olhar no trilho, claqueio mentalmente o som das rodas sobre os carris.
Dói, não sei bem o quê e por isso tão difícil se torna diagnosticar, mas dói sempre e cada vez mais ao observar o abandono de tudo o que foi.
Acredito que as memórias perduram e resistem abandonadas apenas para que possamos sentir que, de facto, quando ao futuro chegarmos vermos que o que deixamos abandonado encerra a parte de nós que não deveríamos ter esquecido, o reflexo da nossa face na superfície da vida.
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