De mãos abertas

Crónica na Bird Magazine, em 09/04/2017.

Olho para os meus pés e vejo-os virados para locais que não conheço, sinto pequenas mãos que me puxam vestes que não trago vestidas e quando eu mesmo olho as minhas mãos, assim, abertas, estendidas, com as palmas viradas para o chão, sinto que a Terra me tenta falar, deixo que o frio tépido me seduza e as pálpebras sucumbam a um sonho qualquer. 
De que são feitas as minhas mãos? Invejo as mãos calejadas e toscas de quem trabalha no campo, na terra, na vida, as que limpam o suor da face quando o Sol lhes leva o cansaço, as que se metem nos bolsos furados e sem fundo, que apertam outras mãos nuas, sem ocasos ou eclipses, as que suportam vidas e cajados e carecem de carícias.
As minhas mãos envelhecem comigo, percorrem teclas como quem salta de pedra em pedra numa lagoa descoberta por acaso. As minhas mãos lacrimejam quando sentem e estão assim, viradas para o mundo, com estrelas e letras, palavras que ainda não nasceram, tacteiam o escuro em que o mundo por vezes penetra, para depois sorrirem comigo, quando, firmes no volante, um odor lembra um sonho que elas moldaram.
As minhas mãos talvez sejam eu mesmo, abertas, viradas para o mundo, agarradas a um corpo que não conseguem fazer voar, correndo desenfreadamente em busca de um solo quente, de mergulhar em águas ainda não passadas, de se sentirem comprimidas a um espelho.
As minhas mãos anseiam tocar almas, respirar fundo e abrir um portão grande, de madeira, que veda a entrada de todas as minhas paisagens sem fronteiras.
De quanto precisarei para ser do tamanho daquilo que não alcanço?
O vidro embacia, os faróis dos outros carros ofuscam-me a visão apesar dos meus olhos verem as pessoas e as almas que por lá habitam. O limpa-vidros dança numa pequena tentativa de me seduzir, mas na verdade sou eu quem o comanda. A paisagem vai-se deslocando enquanto me guio pelas curvas do destino. Não há pequena eira abandonada que não me queira secar ao Sol. Não há fraga alguma que não me queira abrigar da chuva.
Todos os campos, com os seus cereais, convidam-me a percorrer lentamente, de olhos fechados, com as mãos abertas, sentindo o frio e o quente, o prazer e o êxtase de germinar enquanto anoiteço encostado aos meus sonhos.
Gosto de estar aqui, a contrariar os olhos que teimam em fechar, sinto o sono escorregar por mim, envolver-me no seu manto quente de noite transmontana, mas, no final, sou eu que o adormeço. 
Acena-me com todos os sonhos que me aguardam, serve-mos como se fosse a sobremesa recompensadora de um dia servido mal temperado.
No entardecer das minhas mãos os meus dedos percorrem as últimas e efémeras linhas dos horizontes dos meus mundos, alcançam ainda as sombras longas de pinheiros que nunca subi, para serem também um pouco de sombra e trevas na crista das minhas vidas.
Eu sou grande, fisicamente, mas quando me amparo na sombra de um murmúrio vejo o quanto de crescimento tenho para minguar.

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