A chuva, sempre a chuva

Crónica, na Bird Magazine.

Não pelo frio, que corre lá fora, mas pela memória de ver serpentear a espuma do café sob a negrura do líquido e dos dias, que me aquece as mãos em concha segurando a tigela. 
Não pelo calor, que deslizará a seu tempo pelas paredes exteriores e interiores de um mundo físico, onde cada sombra terá a certeza de sobreviver até nenhum sol mais nascer. 
Por onde, por que, porque, os dias e dias salpicados de cadências rítmicas que não soam, que não são. Há onde tu lá estás algum percalço que faça cair as estrelas quando tropeças nas etéreas obras que criaste? 
Tenho por fundo o fundo, apenas. Está para lá, onde as memórias se enaltecem do futuro que ajudaram a edificar, mas cujo fruto nunca puderam saborear. 
A cada passa um futuro, o potencial gravítico que me agarra ao planeta. 
Como o adoro. O planeta. O futuro. 
Terminarei ainda antes da música, mas mesmo que não tinam as pautas, mesmo que a filosofia me abandone e eu seja apenas um pensamento parado, a sonoridade encontrará a sua própria forma de, pelo frio, pelo calor, se traduzir na tremeluzida vela que dança ao sabor do nevoeiro que os nossos corpos, assim como a água quente do chuveiro, enevoaram. 
Arrefeço, corpo e alma, na esperança da vida pensar que adormeço e o sono se aproxime, chamando o sonho e, assim, eu o capture antes de adormecer e anote todos os segredos que me sussurrou em criança e reinvente a chuva. 
Hoje traz-me a memória do abraço, a ombreira da porta, os pingos que se volatizam quando em contacto com o corpo de um outro ser. A chuva, sempre a chuva, eu, sempre eu. O apagado semáforo que teima em sair do tricolor destino, a rua fechada e um trabalhador abrigado sobre as memórias de dias mais coloridos.
Olhos semicerrados, as gotículas aquosas de uma quimicidade que não se saber ser água. Água, sempre água. As costas encostadas ao húmido vestuário, um autocarro que passa prenhe de passageiros conduzidos pelo destino, o destino, sempre o destino.
Hoje chove, por mim, pelo caderno virtual que abro no deserto com vista para o nada, e por breves momentos, entre água e nevoeiro, juro ter visto um relâmpago e o troar de um trovão que parece chamar por mim. Trovadora, a Natureza canta-me ao ouvido o sussurro de um abrigo sob duas grandes pedras encavalitadas num equilíbrio eterno.
Consegui chamar o frio, novamente, que teima em fugir por entre as minhas recordações de Inverno e de finais de tarde lá de meados de Setembro. 
Abriga-se no meu colo e no olhar aflito de uma dor que não se compreende, penosamente enfia o seu focinho afiado entre o meu braço e o tronco e deixa-se ficar, quase que adormecido, enquanto eu próprio também durmo na esperança de acordar e ver que o dia é ainda dia. 
Se nos teimarem ser Verão, também seremos, verão que das estações só as do comboio, mesmo que alienadas e despojadas sejam, permanecem inalteradas na paisagem, quem as não tem? Paisagens e estações? 
O frio escapa-se-me e segue, por aí, acalentando olhares de soslaio, sonhos de catraio, dois ou três pares de nuvens e um sorrio. São estas as minhas orações.

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