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A mostrar mensagens de fevereiro, 2016

Quem é o sonhador?

Crónica de domingo na Bird Magazine . É de uma forma desformada que a noite me vai entrando pelo corpo.  Começa pela sombra que contorna a caneta, depois pesa-me no olhar, desfoca-me a visão, aconchega-me com o pijama e um velho casaco azul gigante, a cor, não o casaco e, por fim, traz às costas um saco de pano do tamanho, vejamos, de um saco de pão normal, o saco, o pão também, e, lá dentro, todos os sonhos que vai mostrando.  Por vezes comporta-se como um vendedor, africano, abre o saco, olha em redor, estou sozinho, estende os sonhos no chão, faz um movimento de arco-íris, que é como quem diz meia-lua, não importa a fase agora, como que exibindo o que tem, depois olha para mim e é isto que jamais esqueço, o olhar da noite nos meus olhos, e parece questionar: Qual queres agora? E eu, recolector por natureza, fico com todos tendo como fiel depositário ela mesma, a noite. Hoje guardou o saco, não me mostrou sonhos e, por momentos, vi sair dali um qualquer diabrete, agarran...
À janela o gato preto enche a noite de escuridão, nada percorre mais veloz as sombras da minha mão que tudo o que calei com a minha voz, era o silêncio, contava-te com o olhar embaciado, nunca sem o saberes imerso na naturalidade selvagem que te veste ficavas calado e nunca, nunca, nunca!, te deixaste entrar pelo sonho acordado.
Molhou-me Agosto no despertado mareado da manhã a encriptada onda na espuma alva de ontem esbatida aos meus pés amanhã, molhou-me Agosto ao encontro do peito turbilhado pela terra árida arada a rebeldia da semente escorrendo correndo no labor em minhas mãos feito temperado, eu, com travo de nada, molhou-me Agosto a tempo do cair das estrelas esbatidas no término da tarde eis-me em terras de suor onde o dia se expele e arde, com mãos frias palavras criadas na clausura do silêncio de tudo nada tentando à noite que se dorme de vez em quando, de vez em quando, molhou-me Agosto e na placidez da urze de Inverno onde neva a vida a meio tom molhou-me, uma vez mais, Agosto talvez para me fazer recordar um dia também eu fui bom.
Acordo-me ao sôfrego latejar do frio entre as notas e o colmo do longo e avançado estio, de que me visto quando nas palavras me escrevo Deus eis-me teu servo, leira entre verdades a feira vazia vereda de veracidades, olha-me, velho, por entre todas as minhas idades.

Pi(ão)

Crónica de Domingo na Bird Magazine . É impossível não olhar para as crianças e sorrir convencido que se não crescerem serão o futuro. Mas temo, temo pelos pais (e que legitimidade tenho eu?), pelo sistema de deseducação, pela sociedade que lhes vai pedir tudo aquilo que eles não precisam. Mas, para já, ainda longe da idade de espreitarem as etiquetas das roupas, embora a idade das marcas e tipos de telemóveis tenha vindo a diminuir, vão sentando-se no chão, atirando uns piões moderníssimos (que a TV lhes vai vendendo), rindo-se das solas dos chinelos mais desgastadas, o joelho que se apoia no empedrado chão e se esfola, os risos, tudo vai ecoando pela entrada da tarde como um claro regato de água corrente que não vai a lado algum. Fecho a porta do carro, pé na embraiagem, ligo-o, puxo o cinto de segurança num gesto automatizado e destravo-o, nada caiu, óptimo. A rádio, perdão, as rádios, debitam (vomitam) as mesmas músicas, as mesmas notícias, hoje nem a música clássica me apetece...
Agora que o tempo se converte em matéria, energizo o que de alma resta e emigro para duas oitavas acima ou para qualquer frequência que aceite o meu silêncio. 

De torga em torga

Crónica de domingo na Bird Magazine.   O frio agarra-se às pernas enquanto caminho, parece um noviço gato ronronando, de cauda levantada, com olhos amarelos e rasgados, atrasando-me os passos no seu movimento de infinito ao redor de cada perna. Desapegado do gato, que parece ter desistido de ronronar e me segue em passo apressado de gato, que mesmo apressado nunca é deveras rápido, vou caminhando e caminhado subindo e descendo pequenas e grandes pedras incrustadas no solo como se fossem grandes e preciosas gemas colocadas num anel que se oferecerá ao anelar dedo de uma amante, baixo a cabeça para ver curiosas formações de erva verde e galhos secos já mortos que o vento se encarregou de amontoar no vale em v fechado entre duas rombas e gordas pedras. Passo por um amontoado de gente que se acotovela e estica o pescoço, erguendo a cabeça e espreitando para a frente como se a vida fosse um livro semi aberto por onde todos queiram ver sem se preocuparem em ler. Contorno-a...
Acabo de colorir o mundo com cor de tangerina. Vai-se o vento e cai-me aos pés, quase como quem se ensina, e prostrado ergue-me o olhar como se eu, vagueante, pudesse além do soçobrado dar do que não tenho e me mingua, como uma trave de carvalho, queimada, como a pessoa sem olhar, de silêncio queimada.