Quem é o sonhador?

Crónica de domingo na Bird Magazine.

É de uma forma desformada que a noite me vai entrando pelo corpo. 
Começa pela sombra que contorna a caneta, depois pesa-me no olhar, desfoca-me a visão, aconchega-me com o pijama e um velho casaco azul gigante, a cor, não o casaco e, por fim, traz às costas um saco de pano do tamanho, vejamos, de um saco de pão normal, o saco, o pão também, e, lá dentro, todos os sonhos que vai mostrando. 
Por vezes comporta-se como um vendedor, africano, abre o saco, olha em redor, estou sozinho, estende os sonhos no chão, faz um movimento de arco-íris, que é como quem diz meia-lua, não importa a fase agora, como que exibindo o que tem, depois olha para mim e é isto que jamais esqueço, o olhar da noite nos meus olhos, e parece questionar: Qual queres agora? E eu, recolector por natureza, fico com todos tendo como fiel depositário ela mesma, a noite. Hoje guardou o saco, não me mostrou sonhos e, por momentos, vi sair dali um qualquer diabrete, agarrando-se ao meu pescoço com uns braços pequeninos e dizendo: Que é do sonho o sonhador.
Fazem-me falta as palavras que não conheço, as que estão na paisagem que vi há pouco, tão calcada, tão desconhecida, com o vento frio que me semicerra os olhos e me faz ver espectros no azul do céu. O cacarejar das galinhas, o som abafado dos carros, poucos, na estrada com buracos, muitos. Ir a pé umas centenas de metros, com destino correcto, é análogo ao meu caminhar pelos montes da vida. 
Saudades dos tempos em que centenas de metros eram os quilómetros que separavam aldeias, comer um punhado de grelos com azeite, alçar a perna no banco de madeira da cozinha e seguir viagem até um olival.
Creio que os tempos em que parecia não existir tempo para a vida, eram os tempos em que vivíamos o que existíamos. Como quando saí para a rua, para as traseiras da casa dos meus pais e deixei-me estar ali, com as mãos nos bolsos, o pescoço encolhido dentro do casaco, que o frio era muito.
Após a troca de presentes, que vale, para mim sobretudo, por olhar os sorrisos de outros e o olhar de criança que sempre surge nesta noite, saí. 
Estava frio, acho que já o disse. Muito frio. 
Vir até à casa dos meus pais, apesar da curtíssima distância, foi uma aventura de enregelar, tive que raspar o gelo do pára-brisas, por isso, estava frio, muito frio. Fiquei em pé, desliguei a luz de fora para poder ver melhor o céu que estava, como muitas das outras vezes, fabuloso, mas, para nós, o lar é sempre o lar, belo.
Sem o saber estava a receber mais uma prenda de Natal, murmurava ao meu ouvido, com aquela voz que só se ouve com o coração, lembrava-me as minhas próprias palavras de criança, quando dizia que o céu era um véu escuro, que nos separava de um sítio luminoso e que esse local era visto pelo brilho das estrelas, quando conseguirmos, dizia eu, olhar para dentro de uma estrela, veremos o lado de lá da vida.  cegamente que as estrelas eram sonhos dos homens (de humanidade), que saíam do seu coração e subiam, no alto, até encontrarem o véu e o rasgarem ao leve. E esse rasgão, ou buraco, por onde passava a luz eram as estrelas.
Foi o meu melhor presente de Natal, sem desprimor para os que recebi, principalmente pelo carinho que senti neles, mas reencontrar aquela voz suave e terna, que sussurra dentro de nós e nos faz ver estrelas onde estão apenas luzes distantes. 
Ficou composta a noite pela confirmação, que sempre chega, quando penso algo. Uma pequena luz azul que cruzou o céu e seguiu até desaparecer. "Esse é o teu sonho", disse-me a voz. 
E porque nessa noite eu era criança novamente, acreditei e sorri.

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