Vem ter comigo
Crónica de domingo na Bird Magazine
O Sol vai aquecendo lentamente e timidamente, apesar do periélio, a manhã de Inverno que se faz amanhecida aspergindo luz encostas acima até se encontrar com a hora de almoço. Vou caminhando lentamente, por vontade e necessidade, com as mãos nos bolsos, por vontade e necessidade ainda, pelo emparedado caminho que me habituei a gostar como a pele que permite manter íntegra a amálgama carnal que piloto enquanto habito neste orb.
O mundo parece mais pequeno, agora, os muros mais baixos e a distância de mim à minha própria sombra vai subindo, sem que isso signifique que a escuridão projectada esteja mais longe da luz desejada.
Concentro os passos em planos de três, vá-se lá saber porquê, um, dois, três, reinicia, um, dois, três, reinicia, sem qualquer motivo aparente e na tentativa de descobrir uma razão, dou por mim a pensar no ditado que três foi a conta que deus fez, por isso, nesta matematicalidade talvez exista um sentido que não descobri.
Embora as ruas se concentrem inalteráveis, é impossível não perceber que existe uma dificuldade maior em altivar o caminhante, como o fazia antes, desenvoltamente, a cada passada, erguendo-se silenciosamente acima dos muros e subindo, sempre, transformando o passeio num constante futuro que se visiona apenas quando se é criança.
Hoje, sábado, domingo?, que dia é hoje?
O Sol aquece e ilumina, a minha sombra persegue-me, as mãos nos bolsos do casaco de malha. Olho para o lado e cumprimento, como sempre, a trejeito tímido, uma e outra pessoa, jovem antes, velha agora, bom dia ou boa tarde, boa noite raramente porque apesar de solarengo, a noite quando se destapa e sai da cama com firmeza chega fria como o olhar de muita gente que ainda não amanheceu.
Sem que me aperceba, tacteando a parede, vem atrás de mim uma criança. Devo levar uns bons dez metros de adianto e, ao perceber que vem distraída, paro a marcha e olho para trás. Traz um sorriso tranquilo, um olhar indagador e as mãos a fazerem cócegas a pequenos tufos de musgo ainda orvalhados apesar do Sol. Quando está prestes a chegar até mim afasto-me, talvez eu pareça invisível a uma criança, mas não o sendo, há que ter a preocupação de não atrapalhar a marcha de quem no presente se move tendo como futuro a próxima fenda entre pedras do muro que ladeiam o caminho ou o mais confortável tudo.
Sigo, a pé, atrás dela.
Bom dia aqui, bom dia ali, assobio silenciosamente meia dúzia de músicas que gosto. O caminho vai fazendo-se normalmente, o Sol aquecendo a destapada cabeça e a inusitada criança no seu caminho passa a ser a minha curiosidade.
Percorro os seus mesmos passos e, por vezes, quando não há casas a espreitar, afago um e outro tufo de musgo, ficando depois a saborear com o tacto a água um pouco mais densa que ficou no indicador e polegar.
O percurso termina quando o vejo parar. Olha para trás, vê-me, sorri e estende a mão para mim. Aparentemente sem saber das novidades perigosas deste belicista mundo, sem qualquer receio de um adulto, faz sinal para continuar em direcção a ele e ao chegar à sua beira, estendo o braço e ao tocar na sua cândida e alva mão, sinto apenas o húmido toque de um musgo verde escuro que deixa na imaginação um dia de Sol por cima do nevoeiro que, por momentos, se interpõe entre mim e a janela, mas apenas por momentos, pois ainda que em pé, em casa, a espreitar o cinzento nevoeiro por detrás do vidro, onde a esforçada respiração se condensa a cada baforada de um calor que ainda não esmoreceu. Ainda.
Pisco os olhos. Faço de conta que o húmido nos dedos não é do vapor de água que acabei de limpar, mas sim do musgo que aquela criança desejou que eu conhecesse e, rapidamente, atrás agora da cortina, piscando novamente os olhos sem desvanecer a visão, o Sol nasce de novo e a manhã apresenta-se radiosa e radiante, por vontade da necessidade.
Perdido agora, desabituado ao vai e vem daquilo que não volta, descanso o olhar encostado a um pilar, enquanto vejo o rio de água borbulhando pelos paralelos.
Há uma pequena folha que passa.
Depois um barco de papel.
De seguida vários.
Levanto as golas, tiro os óculos e sigo "rio" acima até, depois de uma curva, ver um puto abrigado por um guarda-chuva, sentado numa pedra que a chuva não chegou a molhar, a dobrar cuidadosamente um papel e a escrever "vem ter comigo", antes do papel ganhar forma e ele o colocar no ribeiro de água turva que passa neste pedaço de terra.
Vejo o barco seguir e ele, curioso, dá-me o guarda-chuva e diz-me, "vou ver onde eles passam".
Esqueceu-se de umas folhas, sento-me na pedra seca, guarda-chuva entre o ombro e a cabeça, dobro as folhas de papel e escrevo "vem ter comigo" antes de o colocar no ribeiro...
Fico a acompanhar o movimento e quando levanto o olhar, alguém caminha para mim, de olhos semicerrados pela chuva, golas levantadas e mãos nos bolsos.
O Sol vai aquecendo lentamente e timidamente, apesar do periélio, a manhã de Inverno que se faz amanhecida aspergindo luz encostas acima até se encontrar com a hora de almoço. Vou caminhando lentamente, por vontade e necessidade, com as mãos nos bolsos, por vontade e necessidade ainda, pelo emparedado caminho que me habituei a gostar como a pele que permite manter íntegra a amálgama carnal que piloto enquanto habito neste orb.
O mundo parece mais pequeno, agora, os muros mais baixos e a distância de mim à minha própria sombra vai subindo, sem que isso signifique que a escuridão projectada esteja mais longe da luz desejada.
Concentro os passos em planos de três, vá-se lá saber porquê, um, dois, três, reinicia, um, dois, três, reinicia, sem qualquer motivo aparente e na tentativa de descobrir uma razão, dou por mim a pensar no ditado que três foi a conta que deus fez, por isso, nesta matematicalidade talvez exista um sentido que não descobri.
Embora as ruas se concentrem inalteráveis, é impossível não perceber que existe uma dificuldade maior em altivar o caminhante, como o fazia antes, desenvoltamente, a cada passada, erguendo-se silenciosamente acima dos muros e subindo, sempre, transformando o passeio num constante futuro que se visiona apenas quando se é criança.
Hoje, sábado, domingo?, que dia é hoje?
O Sol aquece e ilumina, a minha sombra persegue-me, as mãos nos bolsos do casaco de malha. Olho para o lado e cumprimento, como sempre, a trejeito tímido, uma e outra pessoa, jovem antes, velha agora, bom dia ou boa tarde, boa noite raramente porque apesar de solarengo, a noite quando se destapa e sai da cama com firmeza chega fria como o olhar de muita gente que ainda não amanheceu.
Sem que me aperceba, tacteando a parede, vem atrás de mim uma criança. Devo levar uns bons dez metros de adianto e, ao perceber que vem distraída, paro a marcha e olho para trás. Traz um sorriso tranquilo, um olhar indagador e as mãos a fazerem cócegas a pequenos tufos de musgo ainda orvalhados apesar do Sol. Quando está prestes a chegar até mim afasto-me, talvez eu pareça invisível a uma criança, mas não o sendo, há que ter a preocupação de não atrapalhar a marcha de quem no presente se move tendo como futuro a próxima fenda entre pedras do muro que ladeiam o caminho ou o mais confortável tudo.
Sigo, a pé, atrás dela.
Bom dia aqui, bom dia ali, assobio silenciosamente meia dúzia de músicas que gosto. O caminho vai fazendo-se normalmente, o Sol aquecendo a destapada cabeça e a inusitada criança no seu caminho passa a ser a minha curiosidade.
Percorro os seus mesmos passos e, por vezes, quando não há casas a espreitar, afago um e outro tufo de musgo, ficando depois a saborear com o tacto a água um pouco mais densa que ficou no indicador e polegar.
O percurso termina quando o vejo parar. Olha para trás, vê-me, sorri e estende a mão para mim. Aparentemente sem saber das novidades perigosas deste belicista mundo, sem qualquer receio de um adulto, faz sinal para continuar em direcção a ele e ao chegar à sua beira, estendo o braço e ao tocar na sua cândida e alva mão, sinto apenas o húmido toque de um musgo verde escuro que deixa na imaginação um dia de Sol por cima do nevoeiro que, por momentos, se interpõe entre mim e a janela, mas apenas por momentos, pois ainda que em pé, em casa, a espreitar o cinzento nevoeiro por detrás do vidro, onde a esforçada respiração se condensa a cada baforada de um calor que ainda não esmoreceu. Ainda.
Pisco os olhos. Faço de conta que o húmido nos dedos não é do vapor de água que acabei de limpar, mas sim do musgo que aquela criança desejou que eu conhecesse e, rapidamente, atrás agora da cortina, piscando novamente os olhos sem desvanecer a visão, o Sol nasce de novo e a manhã apresenta-se radiosa e radiante, por vontade da necessidade.
Perdido agora, desabituado ao vai e vem daquilo que não volta, descanso o olhar encostado a um pilar, enquanto vejo o rio de água borbulhando pelos paralelos.
Há uma pequena folha que passa.
Depois um barco de papel.
De seguida vários.
Levanto as golas, tiro os óculos e sigo "rio" acima até, depois de uma curva, ver um puto abrigado por um guarda-chuva, sentado numa pedra que a chuva não chegou a molhar, a dobrar cuidadosamente um papel e a escrever "vem ter comigo", antes do papel ganhar forma e ele o colocar no ribeiro de água turva que passa neste pedaço de terra.
Vejo o barco seguir e ele, curioso, dá-me o guarda-chuva e diz-me, "vou ver onde eles passam".
Esqueceu-se de umas folhas, sento-me na pedra seca, guarda-chuva entre o ombro e a cabeça, dobro as folhas de papel e escrevo "vem ter comigo" antes de o colocar no ribeiro...
Fico a acompanhar o movimento e quando levanto o olhar, alguém caminha para mim, de olhos semicerrados pela chuva, golas levantadas e mãos nos bolsos.
Comentários