Desabado
Crónica de domingo na Bird Magazine.
Porque o tempo não aguarda, simples pelo facto de quem não tem guarda, vai ribombando neste fim de tarde, fazendo lembrar o inverno que já chegou onde nunca saiu, da mesma forma que estremece os vidros das janelas da sala, que olham para mim com legítima inveja, ao verem-me deitado no sofá, ausentes sequer da noção da dor que me aflige.
O vento anuncia-se mesmo após fechar os estores, ondula-os como se fossem as cristas encapeladas de um mar invisível cujas ondas se deixam cair esparramadas na areia que imagino ser o chão onde descansa a minha chávena de chã.
Permito-me desligar toda a interferência que se acomete aos sentidos, como se tudo fosse fonte emissora de pensamentos que se pretendem incutir. Hoje, afianço-me, serei eu e eu mesmo. Embora a televisão me olhe, escura, o computador descanse e arrefece nas minhas pernas, no silêncio que consigo ouvir no espaço entre as pingas grossas de chuva que caem lá fora, nos paralelos, e nas ouras gotas aglomeradas em poças de água, há uma cacofonia de pensamentos que nem sabia possuir. Parecem pequenos cachorros carentes, latindo e arfando, saltando na sua minusculidade na tentativa de um dono zeloso os segurar, mas como tento não os alimentar, depressa me mordem as calças primeiro e, depois, tentam a carne. Metaforicamente, claro, não ferem a carne, mas apercebo-me, lentamente, após vê-los aparentemente desistir enquanto se deitam cansados na areia do meu chão, que não resisto em olhar para eles, com pena, e é nesse instante que se transformam novamente apercebidos que estão que eu lhes voltei a atenção.
Passo algum tempo nesta admiração de mim mesmo, as cogitações que nem sabia possuir em mim. Agora, estão silenciosamente transformados em grãos de areia. Após vários minutos apercebi-me que poderia deixar o vento jogar o seu jogo e, a cada batida do estore, a cada assobio destemido na esquina do prédio, correndo e vagando nas ondas que o trovão faz passar pelos buracos do entreaberto estore em forma de luz cega, a atenção dada aos pequenos, irreverentes e incautos pensamentos esmoreceu-se, transformando-os no que são, areia no meu chão.
A cada abandono de mim há um desabamento.
Cai-me aos pés tudo aquilo que não necessito, a dor, a alegria, o passado e o futuro.
Por momentos em que penso que o tempo se resume a ser o exacto instante em que o relâmpago rasga a tarde numa violência que apercebo, posteriormente, ser um profundo acto de amor por si mesmo, na descarga eléctrica que une o céu e a terra, por momentos, dizia, antes de divagar nas metáforas que alimento como pequenos peixes num aquário oceanado, sinto que o tempo dimensionado que nos faz envelhecer e perceber sem sairmos de nós mesmos que parte de nós mora em partes de outros para. Assim. Para. Sem mais nem menos.
Nesse instante, sem tempo e sem medo, é quando me permito sair deste casulo amorfanhado em roupa, oscilar sobre a areia do meu chão quase desabado, e ir lá fora, enxotar com um dedo uma gota de chuva parada mesmo à minha frente, soprar um punhado de gotas e ir seguindo caminho por entre as gotículas aspergidas pelo cinzento nublado.
O vento arregala os olhos em admiração, pisco-lhe o olho e sorrio, malandro e desafiador, e sou capaz de o sentir irado e impotente por aquela imponente herculiedade não me poder tocar agora que também eu sou uma espécie de vento.
Chego ao relâmpago, ao raio, está parado à minha frente como uma imensa chama de uma invisível vela a arder imóvel no topo de um pavio feito de nada, apenas ar. Vejo o seu esgar de esforço, para que se estenda e alcance o chão. O céu parece não esperar e, curiosamente, ainda que parado o tempo, chuva, vento e lamento, ao olhar para cima vejo um céu azul com níveas nuvens espaçadas e a volitarem rapidamente como numa tarde ventosa de uma Primavera que nunca vi florir. Desço, estarei agora a pouco mais de um metro do chão quando alcanço o final do relâmpago. Olho novamente para cima e o raio desaparece e desvanece-se na claridade do antagónico céu azul. Volto o olhar para o chão, sorrio com o efeito tsunami de uma minúscula gota de chuva suspensa, metade gota, metade poça no solo enrugado. Coloco uma mão na água, mergulho-a poucos centímetros e encontro o chão. Levanto a cabeça e o meu olhar está à altura do que me apresso a comparar com um relâmpago saído da mão de Zeus. A medo, aproximo a outra mão do azul relampejado e sinto uma amenosidade que me envolve, estou a milímetros, aquela luz bruxuleante, fluorescente, que ilumina sem ferir o olhar numa espécie de bailado hipnótico entre o mundo e fundo… Ganho coragem e aperto a mão em torno do raio. Há todo um calor que me trespassa o corpo, olho para baixo e tenho tempo apenas para ver o meu reflexo na poça onde imóveis ondas do choque das gotas vão diminuindo até serem apenas água numa tarde chuvosa de sábado.
Abro os olhos, o único tique taque que ouço é o bater do meu coração despassado no peito, o vento atira-se agressivamente contra o estore, como uma onda raivosa bate na pegada do pé que retirei a tempo antes de me molhar. Espalhados pelo tapete estão os restos dos pensamentos abandonados, sem que os alimente, aguardando que os chame, mais calmos agora, para dentro do que sou.
O sábado vai caindo com a chuva, deixo-me estar no sofá acreditando que a realidade se desenrola mais facilmente que a estupidificação que a televisão tenta fazer chegar a que não ouve, com vários canais e frequências.
Outro raio cai.
Permaneço aqui, deitado, desabado.
Pareceu-me ouvir no fulgir da luz relampejada, obrigado.
Porque o tempo não aguarda, simples pelo facto de quem não tem guarda, vai ribombando neste fim de tarde, fazendo lembrar o inverno que já chegou onde nunca saiu, da mesma forma que estremece os vidros das janelas da sala, que olham para mim com legítima inveja, ao verem-me deitado no sofá, ausentes sequer da noção da dor que me aflige.
O vento anuncia-se mesmo após fechar os estores, ondula-os como se fossem as cristas encapeladas de um mar invisível cujas ondas se deixam cair esparramadas na areia que imagino ser o chão onde descansa a minha chávena de chã.
Permito-me desligar toda a interferência que se acomete aos sentidos, como se tudo fosse fonte emissora de pensamentos que se pretendem incutir. Hoje, afianço-me, serei eu e eu mesmo. Embora a televisão me olhe, escura, o computador descanse e arrefece nas minhas pernas, no silêncio que consigo ouvir no espaço entre as pingas grossas de chuva que caem lá fora, nos paralelos, e nas ouras gotas aglomeradas em poças de água, há uma cacofonia de pensamentos que nem sabia possuir. Parecem pequenos cachorros carentes, latindo e arfando, saltando na sua minusculidade na tentativa de um dono zeloso os segurar, mas como tento não os alimentar, depressa me mordem as calças primeiro e, depois, tentam a carne. Metaforicamente, claro, não ferem a carne, mas apercebo-me, lentamente, após vê-los aparentemente desistir enquanto se deitam cansados na areia do meu chão, que não resisto em olhar para eles, com pena, e é nesse instante que se transformam novamente apercebidos que estão que eu lhes voltei a atenção.
Passo algum tempo nesta admiração de mim mesmo, as cogitações que nem sabia possuir em mim. Agora, estão silenciosamente transformados em grãos de areia. Após vários minutos apercebi-me que poderia deixar o vento jogar o seu jogo e, a cada batida do estore, a cada assobio destemido na esquina do prédio, correndo e vagando nas ondas que o trovão faz passar pelos buracos do entreaberto estore em forma de luz cega, a atenção dada aos pequenos, irreverentes e incautos pensamentos esmoreceu-se, transformando-os no que são, areia no meu chão.
A cada abandono de mim há um desabamento.
Cai-me aos pés tudo aquilo que não necessito, a dor, a alegria, o passado e o futuro.
Por momentos em que penso que o tempo se resume a ser o exacto instante em que o relâmpago rasga a tarde numa violência que apercebo, posteriormente, ser um profundo acto de amor por si mesmo, na descarga eléctrica que une o céu e a terra, por momentos, dizia, antes de divagar nas metáforas que alimento como pequenos peixes num aquário oceanado, sinto que o tempo dimensionado que nos faz envelhecer e perceber sem sairmos de nós mesmos que parte de nós mora em partes de outros para. Assim. Para. Sem mais nem menos.
Nesse instante, sem tempo e sem medo, é quando me permito sair deste casulo amorfanhado em roupa, oscilar sobre a areia do meu chão quase desabado, e ir lá fora, enxotar com um dedo uma gota de chuva parada mesmo à minha frente, soprar um punhado de gotas e ir seguindo caminho por entre as gotículas aspergidas pelo cinzento nublado.
O vento arregala os olhos em admiração, pisco-lhe o olho e sorrio, malandro e desafiador, e sou capaz de o sentir irado e impotente por aquela imponente herculiedade não me poder tocar agora que também eu sou uma espécie de vento.
Chego ao relâmpago, ao raio, está parado à minha frente como uma imensa chama de uma invisível vela a arder imóvel no topo de um pavio feito de nada, apenas ar. Vejo o seu esgar de esforço, para que se estenda e alcance o chão. O céu parece não esperar e, curiosamente, ainda que parado o tempo, chuva, vento e lamento, ao olhar para cima vejo um céu azul com níveas nuvens espaçadas e a volitarem rapidamente como numa tarde ventosa de uma Primavera que nunca vi florir. Desço, estarei agora a pouco mais de um metro do chão quando alcanço o final do relâmpago. Olho novamente para cima e o raio desaparece e desvanece-se na claridade do antagónico céu azul. Volto o olhar para o chão, sorrio com o efeito tsunami de uma minúscula gota de chuva suspensa, metade gota, metade poça no solo enrugado. Coloco uma mão na água, mergulho-a poucos centímetros e encontro o chão. Levanto a cabeça e o meu olhar está à altura do que me apresso a comparar com um relâmpago saído da mão de Zeus. A medo, aproximo a outra mão do azul relampejado e sinto uma amenosidade que me envolve, estou a milímetros, aquela luz bruxuleante, fluorescente, que ilumina sem ferir o olhar numa espécie de bailado hipnótico entre o mundo e fundo… Ganho coragem e aperto a mão em torno do raio. Há todo um calor que me trespassa o corpo, olho para baixo e tenho tempo apenas para ver o meu reflexo na poça onde imóveis ondas do choque das gotas vão diminuindo até serem apenas água numa tarde chuvosa de sábado.
Abro os olhos, o único tique taque que ouço é o bater do meu coração despassado no peito, o vento atira-se agressivamente contra o estore, como uma onda raivosa bate na pegada do pé que retirei a tempo antes de me molhar. Espalhados pelo tapete estão os restos dos pensamentos abandonados, sem que os alimente, aguardando que os chame, mais calmos agora, para dentro do que sou.
O sábado vai caindo com a chuva, deixo-me estar no sofá acreditando que a realidade se desenrola mais facilmente que a estupidificação que a televisão tenta fazer chegar a que não ouve, com vários canais e frequências.
Outro raio cai.
Permaneço aqui, deitado, desabado.
Pareceu-me ouvir no fulgir da luz relampejada, obrigado.
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