Aqui jaz o amor

“Aqui jaz o amor”, crónica de Domingo na Bird Magazine.

Ao abrigo desta sombra, no meio de um dia quente de Verão, como o são todos os dias dos três meses de inferno em Trás-os-Montes, bafiados e acalorentos de tal gradação que me fazem trocar sílabas numa disgrafia quotidiana, como este dia, nascido ao contrário, onde descemos pelas ruas de Alijó (só consigo recordar este nome, os restantes são todos guardados no saco grande e ligeiro, uma espécie de merendeiro, onde cabem as palavras e as letras amassadas pegadas à crosta da boroa que comprei ali acima, ao balcão do café/mercearia/drogaria/padaria/oásis comercial) ao encontro do Tua, agora pachorrento, gordo e opulento, contrariando a imagem anterior da selvajaria e discurso gradativo por entre as fragas, saltando juncos imaginários, onde a linha do caminho-de-ferro, erguida por gentes de ouro nas paisagens de pedra, concorria com o fluir líquido de um fio de água agreste. 
Tudo ficou para trás, até a sombra, que enquanto me perco nestas cogitações na ânsia de me encontrar já pensado de cima abaixo, pôs-se em marcha para fazer as vontades a Galileu, não vá agora o homem, além de estúpido, regredir às medievalidades e tornar-se o centro do Universo novamente.
Do meu lado esquerdo o muro de granito espreme-se para suster a terra. Ser cemitério aqui é luxo ao alcance apenas dos que são erguidos em ligeiros planaltos, com vista para o mar de cumes e colinas, rasgados aqui e ali pelo penteado arame dos postes de alta tensão. De costas voltadas à encosta, o olhar sereno de quem resguarda os resquícios dos imortais que não habitam já féretro com limitado prazo de validade, o cemitério parece ceder ao peso da tristeza de olhar, ali ao fundo, o encher de águas que jamais se romperão e nunca sairá dali filho algum, apenas a bisarma descomunal em pleonasmo que se enterra cada vez mais na ambição humana. 
As campas, sem qualquer lápide, testemunham o amor e respeito verdadeiro, sem qualquer luxuosidade. Entra-se pelo portão de ferro forjado entreaberto, sob a data retorcida em ferro amassado por mãos de ofícios cujos praticantes habitam, já, os muros que ajudaram a erguer. Este, sem excepção, de tamanho reduzido, vê montículos de terra sem o habitual granito a orlar a campa, apenas um ou outro crucifixo relembra o carácter religioso de onde estamos, aqui e acolá uma lápide ergue-se com os tradicionais assinalados, a data de nascimento e de morte, a eterna saudade dos familiares (a ignorância faz-nos cegos à eternidade) e uma ou outra fotografia de rosto cavado, sério, sem que se desabotoem flores secas, murchas, dentro dos copos trabalhados por vidreiros ou, como também ali ao fundo, um copo de refrigerante faz as vezes à solenidade. Vi-o subir os degraus de granito, com amontoados de alguma terra e papéis que o progresso trouxe da cidade, primeiro os passos até à campa do pai, o sorriso trazido por uma lembrança mais adocicada, depois como minotauro arfante pela tristeza, contorna as pequenas campas e vai ao montículo da mãe, a lápide mais recente força um pequeno torcer de cabeça, não subiu o sorriso, olha cabisbaixo a película ovalizada onde se gravou a imagem, mãe é mãe. Leva o indicador e o médio aos lábios, beija-os para depois os encostar à fotografia da mãe, num gesto que poderia ser amor, mas cuja proximidade pelo abandono carnal se faz ainda dor e, como tal, sente-se ausente o presente. Virou costas, a pressa de sair faz de fio de Ariadne, o caminho de regresso ao carro é rápido para que as saudades não ganhem raiz naquela terra fértil, onde a cada féretro nasce um eterno. Vejo tudo calado, por vezes ser amigo é isto mesmo, deixar calar o silêncio e não dizer que, no momento em que os dedos, que levavam aquele beijo tantas vezes imaginado em vida, tocaram a fotografia de metal, as mãos da sua mãe, etéreas, passeavam pelo cabelo agrisalhado e o seu pai, orgulhoso, trazia do céu os sonhos revelados para que a cada claqueado momento o amor possa ser superior ao sofrimento.

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