As árvores morrem tombadas, assassinadas.
As árvores morrem tombadas, assassinadas. A Crónica do Nada, no Correio do Porto.
O vento apanha-me de surpresa, sopra-me arfante na nuca e atrás da orelha direita, assobia como se pretendesse assustar-me pelo impreparo, como aquela palmada amiga que afaga abrutalhadamente o cachaço do comparsa que há muito não se via.
Há na forma rude de cumprimento não um distanciamento, mas a proximidade caseira de quem foi criado a pau, o carinho e candura é coisa ausente para quem a vida foi dura, como quando à boca do caminho silvado, com restos de maços de tabaco vazios que exibem o futuro doentio de quem também se faz vazio, me diziam olhos que viram já demasiadas órbitas sobre estes feitos, “saía-se de casa com um bocado de pão e meia cebola com sal e ala para o campo”. Dias que se calcavam como os torrões e uma criançada que se fazia adulta em meses, aos tropeções.
Viro-me, o vento rodopia e sorri-me, a gola da camisa oscila momentaneamente, gaba-se de poder agora soprar-me de forma diferente e eis, infelizmente, o porquê. Antes encontrava-o de frente, apanhado ele à socapa por mim que entrado na rua irregular onde os paralelos tapam agora as raízes dos velhos imponentes eucaliptos, que uivavam e agitavam amedrontadores os ramos e as tonas, atiravam bugalhos e enchiam o ar com o seu odor mentolado nos dias de ventania, quando o Inverno se vestia de rigor e a cada sacudidela mais forte a electricidade ausentava-se durante um par ou ímpar de dias.
Voltaria depois repostas as ligações, içados postes de madeira ao som do “ó-iça”, celebrados com as calças do macacão no taipal da carrinha e umas sandes de mortadela ou linguiça.
Não cogito sobre a comparação incomparável entre hoje e ontem, ou ontem e antes de ontem, ou amanhã e o antes de mim, mas o vento, volúvel, volátil, voluptuoso, cujo volume se estreitava para entrar gélido pelo pescoço abaixo, esgueirando-se entre o pescoço com os pelos eriçados e o cachecol de lã, manualmente tricotado sem etiquetas que ostentem aos olhares doutrem o quão de outro tenho em mim, que acabava, invariavelmente quando os dias se despiam um pouco mais de nuvens e deixavam o senhor Sol espreitar a canalhada chegar da escola, no esteio que separava o caminho do monte, enquanto jogávamos futebol desmedido de vaidades e de talento, fintando canelas quando possível, raízes, por vezes o monte e sempre, sempre o tempo.
Chega-me hoje volvidos algumas dezenas de anos, tristemente, por mim e por ele, que sendo vento não é estúpido, de diversas direcções porque criticaram, julgaram, deliberaram e acusaram, condenando à falsa fé as árvores, as giestas, o mato, as silvas, as raízes, os estrepes, as mimosas, as flores e todo o tipo de verdura que dali em terras delas, ainda que o registo notarial humano se vanglorie de possuir, terra, imagine-se, a mesma terra que o receberá féretro, certamente com asco, mastigando-o, vermeziando-o, até que não se confunda corpo e terra, carne e húmus. Graças a Deus.
Ardem as florestas porque a culpa é das árvores, derrubadas ao lado de onde fazíamos as cabanas e, lá dentro, intocados pela adultilidade, fechávamos pactos de amizade que se foram apagando pela idade.
Paro no início da rua que já não é a minha, nem os pactos são ou foram meus e acredito que já nem eu sou eu, habituado que estou a este silêncio e esquecimento mediado por mim e pelo tempo. Permaneço parado, sem qualquer expressão que não a usual mudez e o peso esbatido que os anos foram pintando na esperança, o vento assoma-se, silencia-se, encosta-se a mim e ficamos a olhar, eu embaçado, ele amedrontado, a rua silenciosa, as raízes ainda a empurrarem os paralelos em direcção ao céu, os tocos resinados e resignados onde se colam pólenes invisíveis, porque cortaram tudo. O vento vem-me apuridar a recordação desmemoriada da cabana já ruída, feita com ramos secos de mimosas e tecto de caruma e que nunca abandonei porque guardei lá o mapa de um tesouro que não sei onde escondi e, por isso, o vou procurando em mim e talvez em ti.
Despedimo-nos sem uma palavra ou suspiro, ambos sabemos o que nos espera, o ostracismo ventará e eu irei esquecer-me, porque não tenho qualquer cartograma de onde tenha sido Eu para chegar ao sítio onde me encontrei e, por isso, apanho uma caruma isolada que o vento trouxe aos meus pés, limpo-a, coloco-a no bolso. Viro costas, adenso-me à estrada, triste pelo futuro despreparado, mas com um certo brio em ser agora, eu, simples ermo, a cabana de uma caruma órfã por as árvores morrerem tombadas, derrubadas, assassinadas.
O vento apanha-me de surpresa, sopra-me arfante na nuca e atrás da orelha direita, assobia como se pretendesse assustar-me pelo impreparo, como aquela palmada amiga que afaga abrutalhadamente o cachaço do comparsa que há muito não se via.
Há na forma rude de cumprimento não um distanciamento, mas a proximidade caseira de quem foi criado a pau, o carinho e candura é coisa ausente para quem a vida foi dura, como quando à boca do caminho silvado, com restos de maços de tabaco vazios que exibem o futuro doentio de quem também se faz vazio, me diziam olhos que viram já demasiadas órbitas sobre estes feitos, “saía-se de casa com um bocado de pão e meia cebola com sal e ala para o campo”. Dias que se calcavam como os torrões e uma criançada que se fazia adulta em meses, aos tropeções.
Viro-me, o vento rodopia e sorri-me, a gola da camisa oscila momentaneamente, gaba-se de poder agora soprar-me de forma diferente e eis, infelizmente, o porquê. Antes encontrava-o de frente, apanhado ele à socapa por mim que entrado na rua irregular onde os paralelos tapam agora as raízes dos velhos imponentes eucaliptos, que uivavam e agitavam amedrontadores os ramos e as tonas, atiravam bugalhos e enchiam o ar com o seu odor mentolado nos dias de ventania, quando o Inverno se vestia de rigor e a cada sacudidela mais forte a electricidade ausentava-se durante um par ou ímpar de dias.
Voltaria depois repostas as ligações, içados postes de madeira ao som do “ó-iça”, celebrados com as calças do macacão no taipal da carrinha e umas sandes de mortadela ou linguiça.
Não cogito sobre a comparação incomparável entre hoje e ontem, ou ontem e antes de ontem, ou amanhã e o antes de mim, mas o vento, volúvel, volátil, voluptuoso, cujo volume se estreitava para entrar gélido pelo pescoço abaixo, esgueirando-se entre o pescoço com os pelos eriçados e o cachecol de lã, manualmente tricotado sem etiquetas que ostentem aos olhares doutrem o quão de outro tenho em mim, que acabava, invariavelmente quando os dias se despiam um pouco mais de nuvens e deixavam o senhor Sol espreitar a canalhada chegar da escola, no esteio que separava o caminho do monte, enquanto jogávamos futebol desmedido de vaidades e de talento, fintando canelas quando possível, raízes, por vezes o monte e sempre, sempre o tempo.
Chega-me hoje volvidos algumas dezenas de anos, tristemente, por mim e por ele, que sendo vento não é estúpido, de diversas direcções porque criticaram, julgaram, deliberaram e acusaram, condenando à falsa fé as árvores, as giestas, o mato, as silvas, as raízes, os estrepes, as mimosas, as flores e todo o tipo de verdura que dali em terras delas, ainda que o registo notarial humano se vanglorie de possuir, terra, imagine-se, a mesma terra que o receberá féretro, certamente com asco, mastigando-o, vermeziando-o, até que não se confunda corpo e terra, carne e húmus. Graças a Deus.
Ardem as florestas porque a culpa é das árvores, derrubadas ao lado de onde fazíamos as cabanas e, lá dentro, intocados pela adultilidade, fechávamos pactos de amizade que se foram apagando pela idade.
Paro no início da rua que já não é a minha, nem os pactos são ou foram meus e acredito que já nem eu sou eu, habituado que estou a este silêncio e esquecimento mediado por mim e pelo tempo. Permaneço parado, sem qualquer expressão que não a usual mudez e o peso esbatido que os anos foram pintando na esperança, o vento assoma-se, silencia-se, encosta-se a mim e ficamos a olhar, eu embaçado, ele amedrontado, a rua silenciosa, as raízes ainda a empurrarem os paralelos em direcção ao céu, os tocos resinados e resignados onde se colam pólenes invisíveis, porque cortaram tudo. O vento vem-me apuridar a recordação desmemoriada da cabana já ruída, feita com ramos secos de mimosas e tecto de caruma e que nunca abandonei porque guardei lá o mapa de um tesouro que não sei onde escondi e, por isso, o vou procurando em mim e talvez em ti.
Despedimo-nos sem uma palavra ou suspiro, ambos sabemos o que nos espera, o ostracismo ventará e eu irei esquecer-me, porque não tenho qualquer cartograma de onde tenha sido Eu para chegar ao sítio onde me encontrei e, por isso, apanho uma caruma isolada que o vento trouxe aos meus pés, limpo-a, coloco-a no bolso. Viro costas, adenso-me à estrada, triste pelo futuro despreparado, mas com um certo brio em ser agora, eu, simples ermo, a cabana de uma caruma órfã por as árvores morrerem tombadas, derrubadas, assassinadas.
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