Pessoa, se é que me posso chamar assim

Crónica de domingo, na Bird Magazine.

Volto a descer a estrada, se é que a posso chamar assim, com redobrado cuidado.
As pedras, se é que as posso chamar assim, resvalam e algumas esfarelam-se quando as calco na tentativa de me segurar ao ar vazio e quente que sobra ao largo desta tarde quase quase verão.
Sem querer agarro-me a um monte de ervas, sem saber, pela velocidade da descida, pelo suor que me faz arder os olhos, pelo monte verde que me pareceu todo igual, que por entre as folhas inocentes, se é que as posso chamar assim, estavam algumas verdes e afiadas silvas cujos espinhos espreitavam orgulhosos acima do caule.
Chego a correr ao fim da descida, calculando o espaço e tempo entre a velocidade, o limite de travagem e o leito do rio ali, ao fundo, ainda com um grosso fio de água e as rochas bolbosas, redondas, secas e quentes, imagino eu, pelo calor da tarde a ameaçarem partir os ossos de quem se deixe cair ali, como eu, temo.
Consigo parar a tempo, depois de mim algum cascalho chega também onde estou e bate-me nos calcanhares, uma pedra mais solta bate-me na perna direita e o barulho das pequenas pedras e terra confunde-se com a água que borbulha, se é que posso dizer assim.
A sombra que espreita por onde o sol não alcança projecta-se junto com os raios solares e ali, onde os fotões arrefeceram, formam o contraste perfeito para ver no ar a poeira que a terra atirou ao ar, não sei se a brincar, se a gozar comigo, enquanto desisto de me sacudir pois o suor atraiu o pó e este cobre-me, se é que posso dizer isto, daquilo que sou feito.
Penso na ironia e se seria isto que quereriam dizer quem afirmou, ao pó voltarás.
Estou a meio caminho, ironizo de volta.
Sem conseguir chegar tão longe como os bocados de xisto que me acompanharam na descida, o meu velho caderno fica a escassos centímetros da rampa inclinada, se é que me posso repetir assim.
Vergo-me e apanho-o.
É irónico, ainda, estar com o caderno comigo nesta viagem quando este está completamente sarrabiscado, sem espaço em branco onde escrever.
Rasurei, apaguei, escrevi e re-escrevi, por cima e em desacordo.
Já não me sobram folhas e, que sobrassem, jamais voltaria a pegar na caneta, no lápis, para desenhar as sequências de letras que, relutantemente, se viram transformar em regras operatórias para sucederem a um termo anterior, cada vez maior, até alcançarem, não sem antes me ultrapassarem, uma espécie de magnitude que nunca vi em mim.
Eis-me aqui, já longe de onde não estou, se é que posso afirmar isto, cada vez mais perto de escrever todo o silêncio que venero, a resiliência de umas pequenas flores, bonitas, não lhes sei o nome, que brotam, tal como a água, do granito frio e sombrio, agora, que o observo à sua sombra.
Não passará aqui vivalma, pudera, se as há que vivem e nem o sabem, não percorrerão caminho que se vê desaguar no leito de um fio de água seco onde só correm os seixos e descansam as fragas, cansadas.
Sento-me sem esforço, cansado, suado, com um ou outro arranhão cujo sangue empapou no contacto com a mistura de pó e suor, sem qualquer dor, se é que a posso chamar assim.
Ergo os joelhos, encosto-me à pedra fria que atrás de mim parecia aguardar um outro corpo.
Pouso o caderno e abro-o ao acaso, as folhas moídas, o papel amarelado e as letras descoloradas.
Nalguns locais já só o sulco por onde escrevi vezes sem conta, indistinguíveis as letras ou frases e um ou outro número parecem desenhar um conglomerado de estrelas e quando ergo o olhar e vejo o pó ainda no ar rio-me sozinho, se é que estou sozinho, a pensar em estrelas e a ver, à minha frente, uma estrela, um astro, que me mostra o pó e me inspira a ser tanto e tão pouco como ele, o pó, se é que o chamar assim.
Sem nada por escrever, com todas as claridades que consigo perscrutar à medida que o dia vai caindo para trás dos montes, fecho os olhos e imagino-me, sozinho, numa estação onde já não passam rostos conhecidos ou corpos desconhecidos e, de caderno aberto, apeio-me e faço-me pessoa, se é que me posso chamar assim.

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