O nome dos heróis
Crónica de Domingo na Bird Magazine.
O ar frio que força entrada pelos buracos da persiana faz-me pensar noutras estações, mas acredito que o dia mais fresco que se sente seja apenas um apeadeiro nesta linha quente. Quando abro a persiana, gesto que associo ao descerrar de uma pálpebra do apartamento, como se este meu lar acordasse logo a seguir a mim, e a seguir a abrir as janelas, sem que ainda pudesse acreditar nos meus olhos embaciados, vejo os paralelos húmidos, com poças e semi-poças felizes, a chuva que cai envergonhada numa manhã de Verão e o cheiro a terra molhada que banha, figuradamente, e me transporta para a estação seguinte.
De quando em vez, assim permitindo o pós-operatório, percorro estradas próximas em busca de algumas coisas, entre elas vistas sobre penhascos e rios borbulhantes, sombras frescas onde não vagueie o bafo quente das tardes e o verdejante sobe e desce de pinheiros, eucaliptos, mato, silvado e o castanho ocre da terra por lavrar, xistos disformes, o voo de uma ave, o ruminar descomplexo de um ovil.
Infelizmente este Verão, embora eu queira não acreditar creio no propositado pavio, ao olhar em redor o cinzento que eu possa associar a nuvens, o que vejo é o negrume vaporizado como gritos de dor e pedidos de auxílio das diferentes tonalidades de verde que aprendi a admirar e respeitar. O ar torna-se irrespirável à medida que me aproximo, a sombra que queria desfrutar é apenas o espesso fumo que vai ascendendo em golfadas tapando o Sol que, a custo, tal como na vida real, se esforça para que a luz trespasse o negro fumegante e transforma o dia numa pincelada negra com tons laranja, sem o romanesco travo renascentista.
Os vidros são subidos para que o odor a tristeza que pigarreia as palavras que nem sabemos respeitar fique restrito ao que me rodeia, mas, agradecendo os outros sentidos, ao olhar colam-se labaredas que bruxuleiam com a fúria expressa de uma fome que alastra tronco acima, rugindo como o homem selvagem que vagueia pelos corredores das assembleias da vida, bufando e grunhindo para que não o entendam, e sobem acima das cristas das árvores como se o vermelho ensanguentando se esforçasse para pintar até o próprio céu.
Há um esvoaçar aflito dos pássaros, rastejantes formas de vida arderam já, quem pôde fugir o fez e quem não o pôde está, de momento, a estagiar húmus nos terrenos quase férteis de onde serão construídos proveitos obscuros para gente cinzenta a quem a única cor que interessa é o tom indistinto das cores do dinheiro.
Começo a ver colunas de heróis, felizmente há-os.
Deslocam-se em colunas de veículos, estes não voam, mas também os vejo nos céus, os grandes camiões têm luzes azuis que rodopiam e parecem querer contrariar o lume com aquele azul escuro a piscar na urgência da missão. De vez em quando anunciam a passagem com uivos, aflitos e estridentes, seguem roncando e fumegando estradas fora, enquanto lá dentro e às vezes pendurados, seguem heróis de vermelho, capacete, lanterna, viseira, botas e fardas pagas com suor, sangue e lágrimas, literalmente.
Os heróis são voluntários, como todos os que conheço, e não são perfeitos, como todos os que conheço, mas na fronteira entre o medo e a coragem, onde ficamos parados a ver labaredar a paisagem que não é nossa, eles saltam agarrados a abafadores, a vociferar, “Água! Água!”, pendurados por longas serpentes cuja força contrariam com pés fincados no chão ainda por queimar, répteis que cospem água que deveria servir apenas para saciar a sede, mas que agora lutam para matar o fogo que deveria, também ele, servir apenas para o calor que necessitamos quando o nosso outro corpo não está connosco.
A estrada está molhada, ardeu de ambos os lados, vejo outros heróis sem farda que correm com garrafões de água, há uma carrinha de um centro social e paroquial que corre a levar sacos de plástico com o que me parece ser pão, funcionárias e voluntários ajoelham-se e falam com heróis, cansados, prostrados, faces negras por onde espreita o esbranquiçado da pele nos sítios por onde escorreu o suor do corpo e dos olhos.
Continuo até onde posso. Já não arde, mas a sombra que procurava e a vida que ansiava não existe mais. Há um recente cemitério onde as árvores clorofílicas deram lugar a altas lápides, secas, finas e negras como longos braços de esqueletos decompostos num minuto apenas. Vejo um corpo retorcido por entre os estrepes queimados e fumegantes, fumega também como se todo o corpo respirasse os restos mortais. Dir-me-ão que é um animal, mas para mim está ali a extensão do que somos, respirando e vivendo os mesmos dias que nós.
Dou a volta. Ainda por lá estão os heróis. Dentro dos veículos, de todos os tamanhos, de todas as proveniências, sonam vozes metálicas, alguém segura uma peça negra e fala para a mesma. Começam a levantar-se os corpos cansados, esfregam a testa com a manga negra da fuligem, vão subindo para os veículos, que ronronam como se descansassem antes de nova batalha. Arrancam. Os heróis arrancam sem glória ou sem que ninguém aplauda, vão adormecidos na voluntariedade saindo dos holofotes que começam a ser erguidos e onde surgem engalanados edis e desgovernantes, que não sabem o que é ser herói, porque os heróis também morrem, como os animais queimados, mas deles, após os holofotes, já ninguém se lembrará além dos enlutados familiares, recordando a inconsolável perda dos seus heróis.
Recordo emocionado a saudação de uma freguesia nuestra hermana ao comboio de heróis portugueses que atravessava a sua avenida, um tapete de aplausos que, acredito, todos eles, mesmo os que não foram lá, devem ter gravado nos sentidos e que fazem por ouvir de cada vez que têm que saltar por cima do medo e galgar coragem acima para enfrentar os monstros dos incêndios, dos acidentes, dos gritos nervosos e aflitos de quem em perigo.
Os heróis vivem, andam entre nós e a prova disso é que não têm nome, individualidade, dão todos pelo mesmo nome: bombeiros voluntários.
O ar frio que força entrada pelos buracos da persiana faz-me pensar noutras estações, mas acredito que o dia mais fresco que se sente seja apenas um apeadeiro nesta linha quente. Quando abro a persiana, gesto que associo ao descerrar de uma pálpebra do apartamento, como se este meu lar acordasse logo a seguir a mim, e a seguir a abrir as janelas, sem que ainda pudesse acreditar nos meus olhos embaciados, vejo os paralelos húmidos, com poças e semi-poças felizes, a chuva que cai envergonhada numa manhã de Verão e o cheiro a terra molhada que banha, figuradamente, e me transporta para a estação seguinte.
De quando em vez, assim permitindo o pós-operatório, percorro estradas próximas em busca de algumas coisas, entre elas vistas sobre penhascos e rios borbulhantes, sombras frescas onde não vagueie o bafo quente das tardes e o verdejante sobe e desce de pinheiros, eucaliptos, mato, silvado e o castanho ocre da terra por lavrar, xistos disformes, o voo de uma ave, o ruminar descomplexo de um ovil.
Infelizmente este Verão, embora eu queira não acreditar creio no propositado pavio, ao olhar em redor o cinzento que eu possa associar a nuvens, o que vejo é o negrume vaporizado como gritos de dor e pedidos de auxílio das diferentes tonalidades de verde que aprendi a admirar e respeitar. O ar torna-se irrespirável à medida que me aproximo, a sombra que queria desfrutar é apenas o espesso fumo que vai ascendendo em golfadas tapando o Sol que, a custo, tal como na vida real, se esforça para que a luz trespasse o negro fumegante e transforma o dia numa pincelada negra com tons laranja, sem o romanesco travo renascentista.
Os vidros são subidos para que o odor a tristeza que pigarreia as palavras que nem sabemos respeitar fique restrito ao que me rodeia, mas, agradecendo os outros sentidos, ao olhar colam-se labaredas que bruxuleiam com a fúria expressa de uma fome que alastra tronco acima, rugindo como o homem selvagem que vagueia pelos corredores das assembleias da vida, bufando e grunhindo para que não o entendam, e sobem acima das cristas das árvores como se o vermelho ensanguentando se esforçasse para pintar até o próprio céu.
Há um esvoaçar aflito dos pássaros, rastejantes formas de vida arderam já, quem pôde fugir o fez e quem não o pôde está, de momento, a estagiar húmus nos terrenos quase férteis de onde serão construídos proveitos obscuros para gente cinzenta a quem a única cor que interessa é o tom indistinto das cores do dinheiro.
Começo a ver colunas de heróis, felizmente há-os.
Deslocam-se em colunas de veículos, estes não voam, mas também os vejo nos céus, os grandes camiões têm luzes azuis que rodopiam e parecem querer contrariar o lume com aquele azul escuro a piscar na urgência da missão. De vez em quando anunciam a passagem com uivos, aflitos e estridentes, seguem roncando e fumegando estradas fora, enquanto lá dentro e às vezes pendurados, seguem heróis de vermelho, capacete, lanterna, viseira, botas e fardas pagas com suor, sangue e lágrimas, literalmente.
Os heróis são voluntários, como todos os que conheço, e não são perfeitos, como todos os que conheço, mas na fronteira entre o medo e a coragem, onde ficamos parados a ver labaredar a paisagem que não é nossa, eles saltam agarrados a abafadores, a vociferar, “Água! Água!”, pendurados por longas serpentes cuja força contrariam com pés fincados no chão ainda por queimar, répteis que cospem água que deveria servir apenas para saciar a sede, mas que agora lutam para matar o fogo que deveria, também ele, servir apenas para o calor que necessitamos quando o nosso outro corpo não está connosco.
A estrada está molhada, ardeu de ambos os lados, vejo outros heróis sem farda que correm com garrafões de água, há uma carrinha de um centro social e paroquial que corre a levar sacos de plástico com o que me parece ser pão, funcionárias e voluntários ajoelham-se e falam com heróis, cansados, prostrados, faces negras por onde espreita o esbranquiçado da pele nos sítios por onde escorreu o suor do corpo e dos olhos.
Continuo até onde posso. Já não arde, mas a sombra que procurava e a vida que ansiava não existe mais. Há um recente cemitério onde as árvores clorofílicas deram lugar a altas lápides, secas, finas e negras como longos braços de esqueletos decompostos num minuto apenas. Vejo um corpo retorcido por entre os estrepes queimados e fumegantes, fumega também como se todo o corpo respirasse os restos mortais. Dir-me-ão que é um animal, mas para mim está ali a extensão do que somos, respirando e vivendo os mesmos dias que nós.
Dou a volta. Ainda por lá estão os heróis. Dentro dos veículos, de todos os tamanhos, de todas as proveniências, sonam vozes metálicas, alguém segura uma peça negra e fala para a mesma. Começam a levantar-se os corpos cansados, esfregam a testa com a manga negra da fuligem, vão subindo para os veículos, que ronronam como se descansassem antes de nova batalha. Arrancam. Os heróis arrancam sem glória ou sem que ninguém aplauda, vão adormecidos na voluntariedade saindo dos holofotes que começam a ser erguidos e onde surgem engalanados edis e desgovernantes, que não sabem o que é ser herói, porque os heróis também morrem, como os animais queimados, mas deles, após os holofotes, já ninguém se lembrará além dos enlutados familiares, recordando a inconsolável perda dos seus heróis.
Recordo emocionado a saudação de uma freguesia nuestra hermana ao comboio de heróis portugueses que atravessava a sua avenida, um tapete de aplausos que, acredito, todos eles, mesmo os que não foram lá, devem ter gravado nos sentidos e que fazem por ouvir de cada vez que têm que saltar por cima do medo e galgar coragem acima para enfrentar os monstros dos incêndios, dos acidentes, dos gritos nervosos e aflitos de quem em perigo.
Os heróis vivem, andam entre nós e a prova disso é que não têm nome, individualidade, dão todos pelo mesmo nome: bombeiros voluntários.
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