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A mostrar mensagens de julho, 2016

Vagamundo

Crónica de domingo na Bird Magazine . O corpo tem sono, mas não consigo sequer chegar perto daquele torpor morno que nos aquece, como um Sol que raia no mundo dos sonhos. Há episódios que fazem todo o sentido em épocas adequadas, como o Natal ou a Páscoa, no entanto, quando por irónico acaso do destino os mesmos se desenrolam fora dessas épocas festivamente convertidas a celebrações religiosas, os episódios transformam-se em quotidianas formas de ver diluírem-se, nas camadas invisíveis da sociedade, os vultos bem visíveis que a própria sociedade purga. Sigo em pé no autocarro, não sei se o 701 ou 703. Há lugares vagos, mas não quero sentar-me, estou bem em pé, sem vontade de ler ou sonhar, apenas encostar a cabeça ao varão e olhar para a estrada, com olhos de apenas ver, sem pensar. O autocarro para, entram várias pessoas ao som do aparelho que valida das senhas e passes de autocarro. Longe vão os tempos do tac-tac ou plim ou o mais avançado crrrrrzzztttcrrrrr, os amarelinhos ...

Dualidade no sabor inodoro

Crónica de Domingo, na Bird Magazine . Há um puto que entra no supermercado, mete a mão ao bolso, tira-a fechada e abre-a com a esperança de multiplicar, mas apenas conta o que tinha, moedas de comprar pouca coisa e segue para a prateleira dos chocolates, o entretenimento que adoça a alma ao preço mais acessível. Quatro, eles são cinco, mas ele traz quatro pequenas barras de um chocolate espanhol, barato, que o que sobra terá que dar para a viagem de comboio. Parou. Voltou à prateleira dos chocolates e comprou outro. São agora cinco chocolates para cinco pessoas, ele inclusive, que voltará para casa a pé, gasto que foi o dinheiro no chocolate. Chegará a casa e guardará os cinco chocolates no frigorífico, por baixo das couves e cenouras, para que não veja, para que seja surpresa e, depois, quando a barriga aconchegada pela sopa quente não estiver à espera, ele vai ao frigorífico e apresenta cinco pequenos chocolates, com os olhos brilhantes, feliz. Todos comem o chocolate, devag...

Dias

Crónica de Domingo na Bird Magazine . Feriu-se nas arestas da vida ainda antes de nascer, pulsou compassadamente e esbateu-se... Há existências que valem segundos e horas, gastas, nas sombras puídas do cansaço. Enquanto se amortalha o respirar, um pouco mais de vazio morre sozinho, nas ondas do falar e do calor, imenso, constrói-se um prisma de gente cujas sombras, rebeldes, ficam na noite a aguardar... Há dias assim, sem poemas nem contos, sem risos nem choros, apenas assim. Enquanto algo me embala o corpo com os sentidos, eu deixo que a alma escreva um pouco. Sem máscaras, artimanhas, egoísmos ou esconderijos. Há dias em que o mundo se fecha um pouco mais, em que a sede de viver passa por outras dimensões. Há dias em que sonho que todos os olhos se abram para sempre, como se todos rompessem a cortina espessa que os cobre. Há dias em que nem mesmo todas as canções sabem compor um hino à humanidade. Porque a h...

Nado

in Bird Magazine Nado. Nado porque nasceu do nada e do tudo, nada da parte da mãe, tudo da parte do pai embora os títulos nem sempre possam ser assim, na vida e nas crónicas. Fazia-se adormecido para, à vez, sentir o beijo do pai na cara e, depois, da mãe. Esta repetia o procedimento, primeiro quando o marido se levantava e preparava para cravar espaçadas pegadas na neve alva alta, depois, já após o despertador acordar, ia devagarinho, sentava-se na beira da cama e causava um distúrbio no tecido espacial, uma ondulação no sonho do filho, como se ele fosse um ligeiro planeta desviado da órbita do sono para ir cedendo à gravidade do astro maior que era o amor da sua mãe. O pequeno almoço incluía bocadinhos de pão que caíram da crosta quebradiça do pão do pai. Entre sair para o trabalho e o catraio se chegar à mesa e pousar os braços quentes no plástico frio da toalha com padrão axadrezado, os cruzamentos perpétuos nas encruzilhadas da vida ali à sua frente, tinha o pão (por ser miga...

Ecos

Som De mim a ti Quantos tons? Que navegamos na vocalidade do que sentimos Que idade resta de nós? Na projecção do que aprender Saudamos as vozes do saber. Quantos de nós Podemos almejar a que o silêncio Seja por fim o infinito calado na mudez A mesma que transforma estas mãos Em nudez. Folha branca onde te organizo As pautas onde repousarei notas Soltas De albatroz vestidas Surgem vidas por uma só voz Quem de nós surge nas avenidas Lassas Dos vocábulos taciturnos e sós A que me entrego solene e calada Vós Caladas e solenes entrego-me Que o pregão seja sussurro E o sussurro sussurrado me embale Pois de nada vale a voz Se o calar gnóstico sucumbir E de rosto meio fechado Quase inanimado O sorrir Se vir Sem voz… Sem Nós

“Tudo”

Crónica de domingo na Bird Magazine . Havia tudo. Acordava ao mesmo tempo que o marido. Isto, claro, se a criança não desse ares de inquietude na cama, fosse pelo sonho trôpego ou pelo ronronar faminto das entranhas.  As portadas de madeira, pintadas de branco, eram às ripas e ela sempre achou piada àquela forma estranha. Parecia que a casa, com as portadas fechadas, tinha cara de gente ensonada, gente que dormia com os olhos fechados, mas a espreitar pelas frinchas do sono acordado.  Quando a noite na sua fogosidade se despia, ela via pelas ranhuras a claridade tomar conta do escuro, primeiro misturava-se lentamente, como se o raiar do dia fosse criança pequena e quente a provar o frio da água da praia, depois, já mais afoita, entrava cada vez mais, cada vez mais oblíqua, deixando-se entrevar para depois resplandecente assumir o dia na sua totalidade. A água escorre e cai no lavatório, ouve as mãos do marido rasparem na face enquanto ele a esfrega com sabão para depois ...