Nado

in Bird Magazine

Nado.
Nado porque nasceu do nada e do tudo, nada da parte da mãe, tudo da parte do pai embora os títulos nem sempre possam ser assim, na vida e nas crónicas.
Fazia-se adormecido para, à vez, sentir o beijo do pai na cara e, depois, da mãe. Esta repetia o procedimento, primeiro quando o marido se levantava e preparava para cravar espaçadas pegadas na neve alva alta, depois, já após o despertador acordar, ia devagarinho, sentava-se na beira da cama e causava um distúrbio no tecido espacial, uma ondulação no sonho do filho, como se ele fosse um ligeiro planeta desviado da órbita do sono para ir cedendo à gravidade do astro maior que era o amor da sua mãe.
O pequeno almoço incluía bocadinhos de pão que caíram da crosta quebradiça do pão do pai. Entre sair para o trabalho e o catraio se chegar à mesa e pousar os braços quentes no plástico frio da toalha com padrão axadrezado, os cruzamentos perpétuos nas encruzilhadas da vida ali à sua frente, tinha o pão (por ser migalha não deixa de ser pão) tempo de secar. Os bocados grandes conseguia ele pressionar com o indicador e levar à boca. De vez em quando media as constelações formadas pelas migalhas, afinava a pontaria e tentava com os cinco dedos da mão apanhar cinco crostas de uma só vez. A mãe, no fogão e de costas para a mesa, admirava o rapaz através do seu reflexo na envidraçada tampa levantada do fogão e esperava que ele terminasse de repenicar as migalhas, sorrindo baixinho, para depois se virar com a cafeteira do café quente e caminhar, como sempre, um astro em torno do qual ele gravitava.
Com as aulas já longe, o espanador ganhava uma genuína velocidade nas suas mãos e, de repente, mais pela pequenez da habitação do que propriamente pela velocidade e boa vontade do filho, a casa estava com o pó não depositado. Seria uma questão de horas ou dias até o pó se cansar de volitar e deixar-se cair sobres os livros, a televisão, o rádio e a mesa da sala.
Sem as tarefas domésticas incutidas pela mãe (os astros às vezes queimam), podia sair à rua, resguardado pelos eucaliptos, pinheiros, austrálias, raros sobreiros e rasteiros fetos, ia andando, saudando vizinhos, mãos nos bolsos que tirava de vez em quando para admirar a pulseira de trapos que a mãe lhe fez.
Era altura de se fazer fé e ver as pessoas de enxada ou cavadeira, já depois de cortada a rama, penetrar a terra com o respeito que o futuro nos merece e ao puxar para si o cabo ver, ainda antes de saírem, a colheita boa que o suor precisa. Encostado ao muro, à sombra ainda fresca da manhã (há sombras quentes também, as do meio-dia, pequenas, que não têm forma suficiente para arrefecer o vento quente que por elas passa sem grandes pudores), admirava os calcanhares negros do pó da terra que se cozinhava com o suor que escorria, as costas das mãos que afagavam a testa suada enquanto os olhos se fechavam e a sombra do chapéu dava abrigo à visão da jornada que ainda se avizinhava. Alguém mais afoito cavava na ligeireza que a juventude permite sem prestar ouvidos às vozes mais velhas que lhe diziam que a força ainda haveria de fugir para o cu. Os sorrisos, alguns cantares, o cão que se solta e obriga ao descanso das enxadas não vá alguma dar uma rachadela no bicho, a batata podre que o cão leva na boca e se apressa a roer, sentado na erva talhada aos coelhos com o tubérculo entre as patas dianteiras. Quando o viam, ao miúdo, ainda lhe ofereciam água ou uma sande, mas ele que se alimentava de sonhos, sorria, acenava, educadamente sorria e afastava-se de regresso a casa.
Tarda nada a tarde nada-se no rio, ainda nem as horas da digestão eram dadas já havia braçadas frescas por entre agriões da presa ou juncos do rio, a caminhada por entre o pomar, as dentadas na fruta ainda verde e a corrida agachada fazia do entardecer uma lareira onde se forjava o ferro e o carácter.
O final do dia diurno, antes do dia nocturno, era já preparado no assento da bicicleta na caracterização das séries da televisão, gorro e luvas, olhar de cowboy e seguir estrada abaixo sem dar aos pedais, de encontro ao pai que sempre acreditou que ele não aprendera mais cedo a pedalar apenas para se deixar empurrar por si, estrada acima.
Chega-se a casa, entra a correr a cheirar o estrugido e fica a espreitar na porta, sorrindo malandro. A mãe vai perguntar ao pai se teve um bom dia, que lhe responderá invariavelmente a sorrir:
- Agora sim.
E o puto, feliz, ensaiava o diálogo que ouvia saídos do amor dos pais e caminhava para o quarto, espalhava a mão sobre as lombadas dos livros da pequena estante da sala, tacteando as palavras que irá um dia ler, sabendo que nenhuma poderá ser lida ou escrita que repercuta como o amor ao tudo que nos faz desejar o nada.

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