Pastoreio
Pastoreio, conto publicado na colectânea de contos do Parque das Serras do Porto, 2023
– Ramalho, não!
Passa por mim, numa simpatia apressada, a pastora ofegante por detrás das graduadas lentes que a visão adequa à miopia e madeixas, engrenhadas, coladas ao suor de uma tarde transpirada.
– Ramalho! Não!
As galochas verdes calcam o chão num ritmo atordoado enquanto o calor se afasta do bordão agitado no ar. Desvio-me, nunca se sabe onde o cajado irá parar. Mas o Ramalho, deduzo ser o nome do carneiro, senhor do seu casaco urdido em flocos cinzentos, de terra rebolada em pó sublimado, continua a correr em direcção à fonte de água barrenta, não oxidando o minério que a serra vai parindo, sem necessidade de garimpo. Atrás dele, ordeiras, à pastora ou ao patriarca ovil, seguem cordeiros tenros em passos saltitantes, numa preocupação animal de encher o espaço entre refeições, com outras ruminâncias que o tempo encarregará de saltar em transumâncias.
A Serra espreguiça-se, caprichosa, acima dela o tempo e, mesmo este, recordando a quem obedece, vai fechando os olhos quando o zangarinheiro adormece. O Ferreira borbulha na calmaria de Agosto, límpido quando o homem se afasta, contornando penedos que a corrente arrasta, saciador de memórias baloiçadas, espelho de peitos firmes das lavadeiras enamoradas.
– Ramalho!
Acabara de roubar uma couve que se adaptou à nesga de liberdade entre a rede, ruminando na autoridade de quem se liberta e, assim, ainda que de estimação, abraça a vida de mente desperta. Os sobreiros atraem as rugas, encorrilhados pela necessidade de esperarem um incêndio para valerem a calma desafogueada de quem fruta o mentol, como quem se banha em formol.
– Ramalho!
Já não há aqui qualquer repreensão. Apenas resignação. A pastora, a quem sorri a terra, está sentada num murete de pedras encavalitadas por mãos sábias e agrestes, libertas da mineralização aurífera escravizada, por outros desaguados em terra lusitana.
De quando em vez, Deus afasta as cristas dos eucaliptos e espreita o seu jardim. Como neste momento. Sorri da irrequietude dos fósseis que, ainda agora, pela terra aflora, marcando o resto de uma recordação que o tempo não consegue fazer em história.
– Ramalho?
Os saltos selvagens de motos barulhentas sufocam o calor com o eco de quatro tempos a queimarem o vazio. De pouco se importa o Estio, mas para a pastora, os ribombares falsos de trovoadas secas assustam os icnofósseis comprimidos em fuga pelas dobras, as lousas desaprendendo o rabiscado da escola primária, uma sombra agora de saberes, brincadeiras e deveres.
O Ramalho sabe-se animal e, a esses, provém Deus com o que necessitam, e a outros que sabem que nada falta quando nada alvitram. Agreste por definição, duas balidelas do macho e uma ovelha, fêmea, mansa e sensível, assoma à pastora e encosta-se na ânsia de agradar o pastoreio com um lombo manso, um manto de neve tricotado à pele, que a pastora afaga com a mão trabalhadora, privilégio de uma vida na lavoura. Duas crianças pousam as trotinetes, o olhar dos pais encomenda-as a um futuro serrano, verde, a brotar de tranquilidade. O condão de esperar pelo melhor é similar ao fazer crescer um medronheiro, ainda que apenas na documentada cronológica glória, das árvores pouco reza a memória, estende-se as raízes às galerias romanas, afastando aqui e ali cortas e chaminés, deixando à serrania santificada um futuro velado a seus pés.
As crianças acariciam o lombo malhado, riem-se do cheiro do pêlo e do focinho molhado, o cão pastor dormita do ofício virando as orelhas compridas para os passos adultos em corrida, donos de pressa desmedida. Saltando o muro, deixando o caminho, resvalam o trail em direcção ao lameiro, saltando chamiças, penteando desgrenhadas urzes que um Adolfo imortalizará em papel.
– Ramalho! Anda!
Mas o Ramalho remói o encontro da tarde com o fim do dia, ao longe um moleiro enfarinhado assobia, a água veraneada derrama-se pachorrenta e tranquila e os anjos, serenos, molham as pontas das asas porque o paraíso é local onde uma criança sorri.
Um assobio contorce-se nos lábios gretados da pastora. Nova tentativa. Outro cordeiro, mais frágil, estrutura débil, encosta-se às suas galochas, empina uma marrada equilibrada nas patas traseiras que, assemelhadas a um tufo de cirros, eleva o sorriso da pastora, sonhos de menina, vida de senhora. A mão bolbosa, de unhas gastas pintadas pelas leiras, ostenta montículos de veias salientes, uma vida plantada sob a pele, um salário de horas extras, acima da pobreza citadina e da vaidade, que nada ensina.
Um rebanho é-o quando o pastor o direcciona, mas este, imaginado sustento de uma tarde solitária nas sombras de fragas, faz de cada saída um cogitar de serras vagas. Sem vertente a seguir, quando o horizonte se encurta do lado de cá da montanha, ainda o Sol empina na linha do mar, as memórias guiam o destino da indagação, por que lado devemos partir o pão?
Não havendo contemplações fúteis, a Natureza vive-se a si mesma, tece as vertentes pelos ribeiros, regatos, rios e charcos, que bordam a fronteira, verdejam o solo que nasce em rebentação para ruminar, moldam as vestes desnudas para a simplicidade ornamentar.
Encosto-me ao muro de xisto equilibrado, alguns fantasmas escravizam ainda a superioridade que nunca tiveram, esgravatam as mãos etéreas num garimpo inútil, alheios a pastores, gado e à complacência divina que, essa sim, tudo ensina. Tenho dificuldade em perceber de onde veio este arrabalde montanhoso, as congestões internas de um berlinde à deriva, sem mentor, que traz aos confins do meu olhar a lágrima emocionada, sem pastor.
– Ramalho…
O arrastado e doloroso grasnar humano é já um desabafo, talvez de alguém que sobre este muro sonhou outro futuro. O carneiro levanta a cabeça, duas hastes impressionam o temerário rebanho, que desce de imediato o caminho empedrado e escorregadio, cercando um centro invisível em movimento circular de cardume a rebanhar.
A pastora fita-o do cansaço milenar que não sabe possuir, a falência de uma existência vivida para sorrir. E o Ramalho, porque talvez seja de facto animal, deixa as cem ovelhas do rebanho em segurança, acerca-se da pastora tresmalhada, encosta a sua firme postura à anca humana dura, e bale como quem protege debaixo da asa:
– Bem-vinda a casa.
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