O poeta
O poeta, nova crónica na minha secção Crónicas do Nada, no Correio do Porto.
O colorido dos insufláveis onde as crianças orbitam sem cessar, enquanto outros saltam de cor em cor perante o olhar atento de uma ajudante cansada, alternando o olhar e a atenção entre os catraios irrequietos e os instagramáveis acessos de quem pulula de irreal em irreal, concorre com o cantor, jovem, num improvisado palco de mesas de refeitório amarradas umas às outras à força de abraçadeiras de plástico e boa vontade, solicitando o bater de palmas a uma plateia distante.
O chão do pavilhão multiusos descansa das investidas desportivas do andebol, basquetebol, futsal, karaté e outros menos organizados, como bater-bafo, corridas de meias e futebol com bolas invisíveis.
A festa de final de período, com as divindades edis no olimpo de alvas cadeiras de plástico, os responsáveis de associações, pais, culturais, desportivas, associativas, musicais e outras que tais, convivem na placidez de uma tarde cinzenta, fria, humidificada pelo ribeiro agreste e silvestre que se sacode dos sacos de plástico à medida que passa, na sibilância própria dos regatos numa inverneira chuvosa, e se encosta às margens de calças arregaçadas em caudal de cheia. Não há melhor do que festa na aldeia.
Eu, tarefeiro de motorista, aprecio o bailado dos voluntários que enquadram da melhor forma as mesas para o concurso de bolos. Os pais passam por mim, confundem-me com alguém e cumprimentam-me. Ou talvez sejam, apenas e só, como o que de melhor existe por aqui, bem-educados e entre o sorriso e a “boa tarde!” se indaguem “deve ser família nova por cá”.
Duas jovens surpreendem-me com vasos floridos. “É a flor de Natal”, diz-me uma. E ao perceber que ma tentam vender pergunto o valor. “São 5 euros” de sorriso florido. E, despido de mais uma nota, encosto-me à parede do pavilhão, desta vez com um vaso na mão que equilibro com quatro dedos no fundo do vaso e o polegar cravado na terra.
Ao meu lado, trazido pelo vento, metade de mim em tamanho e o dobro em ilusão, estaciona-se com três casacos vestidos, um carapuço polar e um sorriso infantil e inocente – Sabe com quem está a falar? – pergunta-me em esgar amarelecido e olhar orgulhoso de quem orbita o centro de si mesmo, que é, concomitantemente, todo o seu mundo – Sou um poeta! – e continua num diálogo monologado comigo, uma conversa ritmada pelas rimas que me diz e esforço por ouvir, tamanho o esgar sonoro do jovem cantor, no improvisado palco, a cantar para cadeiras cada vez mais vazias. Quando se cansou das rimas desconexas, ficou a meu lado a ver os insufláveis sacudirem-se à força dos catraios de meias natalícias que saltavam contra as recomendações da menina ajudante no período em que guardava o telemóvel e o retirava, novamente, após nova notificação.
– Sou um poeta! – atira-me como uma despedida e segue caminho, pelo frio, sozinho, para fora do pavilhão, rumo ao infinito que são as métricas isoladas da sua solidão. Só quando saiu do meu olhar me apercebi que queria dizer-lhe, também, rodeado de pessoas ermas, acompanhado pelo empedrado chão, também eu me fiz poeta, num sopro inaudível de clamor, cheio de palavras na mão.

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