Encontra-me um justo que seja…

Crónica na Bird Magazine.

Fixo as lâmpadas do tecto. A semelhança com os filmes é assustadora e real. Há um cheiro a frio no ar, faço uma piada comigo mesmo ao dar por mim a, como sempre, contar de três em três tudo o que vejo, desta vez são os buracos frios da placa de metal onde estão afixados candeeiros e uma parafernália de led’s.
Adormecem-me.
Acordo, falam comigo e ouço tudo muito alto, quero falar e perguntar, mas nada sai da boca. Fixo as mesmas lâmpadas do tecto. A semelhança com os filmes continua a ser assustadora e real. As vozes novamente, as faces surgem de repente, primeiro são um borrão indistinto de cores que não identifico e, lentamente, aglomeram-se até passarem de vultos a faces, conhecidas felizmente.
Agora sim, acordo, é noite, estou confuso.
O tempo demora a passar, vejo-o chegar até mim, pendura-se nas grades da cama, fita-me, pisca-me o olho, mas eu, entre dores e assustado, viro a cara rabugento e fito o céu cinzento carregadinho de ameaças chuvosas e ele, tempo, vira as costas e passa pela parede para ir lá fora abanar as nuvens.
A chuva bate na janela, esboço um sorriso, o vento pisca o olho às nuvens e vai correndo pelo relógio abaixo, mais lesto desta vez.
A vida tem reservado, talvez para cada um de nós, um chamado à terra ou, da terra, um chamado ao infinito que em nós habita, uma forma de colocar em perspectiva tudo o que rodeia e tentar rodear as perspectivas do que somos.
Ao fim e ao cabo não somos nada. Perdão. Somos nada. O dia chega com um copo, um número no plástico que o meu dedo transpirado apaga, alguns comprimidos, uma injecção quente no cateter frio. Alguém entra, traz um sorriso, um bom dia e um tabuleiro com cevada negra fumegante e um pão embalado num plástico perfurado. “É melhor uma palhinha” perguntam-me afirmando, rodopia no calçado de plástico que assobia no chão e entra novamente, desembrulha a palhinha, abre o pão, coloca manteiga, aproxima o copo com a medicação e despede-se com um sorriso e um “volto já para o banho”. Passado pouco tempo entram, enfermeira e auxiliar, espumas quadrangulares, toalhas, ouço água a cair em metal e aproximam-se. “Vamos tomar banho?”. Esboço levantar-me, mas advertem-me, “Nem pensar, no máximo uma inclinação de 30º”. Olho para a horizontalidade da cama, para a verticalidade da cabeceira e tenho vontade de medir ambos, para depois poder saber até onde iriam os tais 30º com as razões trigonométricas, usava a tangente, penso.
“Podemos?” e num pudor profissional tiram a roupa da cama, a bata e a roupa interior descartável, dão-me uma espuma, lavo a cara e escondo a vergonha. Não disfarço o desconforto, “É o nosso trabalho, não se preocupe” falam sem olhar para mim, apercebendo-se do meu nada à vontade. A água morna escorre-me do corpo e outra salgada do canto dos olhos. A roupa despe-me e a humildade veste-me, com carinho viram-me de um lado para o outro, como que por magia estou lavado, mudado de roupa no corpo e na cama. “Amanhã já se levanta” e esta certeza faz-me sorrir.
Outro dia, o prometido será devido, depois de mais um pequeno-almoço deitado irei levantar-me. Antes, porém, os braços fortes do enfermeiro ajudam a içar corpo em bloco. Espero uns minutos, todo o quarto rodopia, esboço humor e pergunto “era mesmo cevada ou bagaço?”, ele sorri, diz-me ser normal, para esperar uns minutos e assim faço. O banho é novamente assistido, consigo lavar quase tudo o que é meu, com excepção das pernas e pés. Novamente a meus pés, com um carinho que me comove, lavam-me as pernas e os pés, “O betadine vai sair com o tempo”. Oh Maria, quem sou eu para me lavares os pés?
Tudo ganha uma relatividade, as dores contornam-se, não sei se me dói mais o corpo ou se o meu reflexo na janela daquele terceiro andar, com o braço, mão e cateter no ar a esboçar um adeus a quem me visita e uma tristeza funda que me faz ver chover por dentro do vidro.
O tempo passa, muito lento mesmo, mas aos poucos a companhia das auxiliares, a conversa com os enfermeiros, as senhoras da limpeza têm uma palavra de consolo e começo a distrair-me com o vaivém das pessoas no corredor (peço para deixar a porta verde do quarto aberta). De quando em vez caras surgem. Nunca pensei saber tão bem a entrada de caras conhecidas, a família, um telefonema, uma mensagem, um email. De repente, eu que me gosto sozinho, faço-me falta, tenho permissão para andar a pé no corredor, passeio-me, bons dias aqui, boas tardes ali. Ao passar noutros quartos olho e é aí que nova relativização surge. Nas portas abertas, iguais à minha, vejo dores distintas, mais severas imagino eu, sacos de soro pendurados, outros de fluidos corporais, um andarilho, alguém me esboça um sorriso, levanto a mão com um olá.
Os vários dias que me pareceu viver em poucos servem para olhar para estes profissionais tão humanamente pessoas que me comovem. Olho de soslaio para a televisão (rodando todo o tronco, não esteja um dos enfermeiros a ler agora), vociferantes e desiludidos jogadores, multimilionários de seu direito, havendo quem pague por que não receber? Faço uma ligeira comparação. Ligeira não, infinitésima. De repente relembro-me da senhora vestida de azul, “é para condizer com a esfregona” diz-me, contava-me da doença do marido que nunca parou de trabalhar apesar das muitas dores, fala desenvoltamente olhando para mim e para o chão lustrado enquanto faz uma espécie de bailado como se de repente fizesse uma finta a dois adversários (acredito que sim, talvez à tristeza e à sina) e segue com rapidez, sempre a falar comigo e a olhar para a porta, onde para, calca a esfregona, que se abre em duas e a mete no balde. Eu quase gritei golo, mas apercebi-me na voz dela o pesar “sabe, é consultas aqui, infiltrações ali, remédios acolá”, mais uma volta na esfregona e sai do balde de novo para o chão “é muito dinheiro, a gente não pode e não são todos como o médico que o operou” e cai-me aos pés novamente o dia. Aguardo o médico, dar-me-á alta no meio destes lamentos não lamuriados que de profissão em riste ainda me anima “vai ver que vai ter alta, eu já estou a limpar para dar lugar a outro e dar sorte a si” e sorri.
Eu quero levantar-me, mas não consigo, não pelas dores, mas pela tristeza pesada, por aquele olhar sorrido e triste, “sabe, a gente não pode” ecoa naquela quarto com cheiro a limpo, digo meia dúzia de palavrões para dentro de mim e pergunto-me para que servirá o dinheiro que sobeja se, de facto, não for para ajudar quem precisa.
Gostava de ser menos tímido, de ter tido a ligeireza de me levantar e ir, pessoa a pessoa, agradecer pelos sorrisos, pelo carinho, pela simpatia e, ainda que não o saibam, pelo amor com que trataram de mim, das palavras aos gestos, da humildade que plantaram em mim. Entro adoentado e apesar de dorido saio com a alma lavada, limpa, por ter conhecido a relatividade da doença e da saúde, por me aperceber destas pessoas maravilhosas que se dedicam a tratar das outras como gostariam que tratassem delas. Serão perfeitos? Não o sei. Acredito que no que fazem são perfeitos e neste mundo parece-me contar mais, muito mais, o bem que se faz sem que se peça nada em troca, nestes momentos em que, espero, alguém invisível veja e restabeleça uma certa justiça na balança existencial de uma raça humana extremamente desumana, mas narra-se, enquanto houver um justo, um justo que seja…

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