Rosalin(d)a

Rosalin(d)a, ou um encontro. 

A minha nova crónica do Nada, no Correio do Porto.(https://www.correiodoporto.pt/prioritario/rosalinda)

O corredor de um hipermercado ostenta quase tudo aquilo que possui e que eu não necessito. David, do alto da sua vigésima terceira ode, sabia bem o que desejava, o nada que sobra de tudo o que não faz falta. De repente, encontro-a sentada num monte de sacos de peletes em sofá improvisado. O sorriso é do tamanho das décadas que me separam da felicidade que vive na memória, aquilo a que orgulhosamente posso chamar história. No beijo e abraço que trocamos reencontro o conforto das manhãs frias onde o quente leite adocicado, retirado da gigantesca panela, servido num usado e translucidado copo, me aquecia o corpo e, agora, o olhar. A sala de aula era ágora extraordinária, a professora no centro, em todo o lado a funcionária.

O viveiro colorido que era a escola primária, agora ornamentado de pomposos nomes agrupados, era ameia, muralha, castelo e universo, tudo ao mesmo tempo. O meu lanche sereno na esquina do recreio, quando ainda me sentia inteiro, era assegurado com o protector olhar da Dona R. Nunca um raio de Sol se sentira atemorizado em dia de Inverno se tivesse, à mão, a palavra em guarita da funcionária, uma de três que acompanharam um ciclo primário de onde, vejo agora, nunca deveria ter saído com inocência em riste. Às vezes, é mais seguro ser triste. 

Passaram mais de quatro dezenas de órbitas, mas nas minhas o colorido é ainda da cor do cheiro da sala de aula, da sua bata e do afagar bondoso. O ameno sabor da repreensão temperada com o ar plácido, amoroso, bonacheirão até, de tudo o que nos falava mantinha os pequenos errantes astros no alinhamento divino. Cada aviso, conselho, palavra, era trabalho de podador em arbusto que nem sempre se verá de pé. E isto é a verdadeira fé. 

A música e o rebuliço do hipermercado não interferem com o diálogo. Ouço em minutos histórias de horas e anos, tudo embrulhado num sorriso infantil que me leva ao melhor que sempre ponderou a cada um. As saudades acabam por ser, no meu caso, o barulho dos passos no soalho, a caminho da janela para ver a chuva cair, um casaco abotoado com carinho e um “cuidado no caminho”. São o assento seguro daquilo que rememoro como mais puro.

Na mudez a que me remeto por nem sempre ser capaz de me exprimir, penso nas palavras que gostaria de dizer, mas sem as conseguir escrever. Os parágrafos sucedem-se em branco, não há qualquer adjectivo para descrever o quanto, neste momento, ela me faz sentir criança, mas inteiro. Os ricos são apenas pobres com dinheiro. E o meu troco, se algum dia pudesse pagar, era o beijo e o abraço que se vai agarrando a tudo o que faço.

– Leio tudo o que escreves. – Comenta quando me preparo para vir embora. Ouço a caixa registadora a passar no leitor de código de barras as suas palavras, uma fortuna que nunca poderei pagar.

– Às vezes penso: o que é que ele quer dizer com isto? Mas se calhar também é isso que queres, não é, deixar-nos a pensar?

E eu despeço-me, sorrindo, a alma cheia de um conforto impagável e conduzo calmamente até casa, todo o caminho, a pensar.




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