O último cacho
"O último cacho", nova crónica do Nada, no Correio do Porto.
O frio cobre-me os braços para uma manhã de sábado pré-Outonal. Esfrego-os para me aquecer e continuo o caminho. Vozes inusitadas à hora matinal percorrem o nevoeiro e chamam-me a atenção. Risos. Aqui e ali uma voz adolescente chama por alguém, numa voz estridente alguém pergunta:
– Este cacho é para a travessa?
Uma voz septuagenária responde, arrastada e agastada.
– Nem para beber há que chegue, deita-o no balde.
Os termos, os sons das tesouras de poda a tricotarem a manta que cobre as minhas recordações, emocionam-me. Ou talvez seja o frio. Apercebo-me que é a época das vindimas quando, na minha mente, já a última poda tinha talhado toda e qualquer colheita que recordasse os meus dias de adolescente. Por entre as folhas das videiras fronteiriças um rosto assoma, espreita e saúda-me. Retribuo com um sorriso. O “bom dia” ficou preso nas rememorações atravessadas na minha glote.
Ao olhar as minhas mãos, já o frio se tinha aquecido na ânsia de um almoço em forma de feijoada. Sentado nos bordos dos cestos cheios de uvas, com as pernas presas entre as pesadas e pegajosas escadas de madeira, o vento batia-me na cara à medida que a pequena carrinha de caixa aberta acelerava, despreocupada, pela estrada a caminho do próximo local de vindima. A cada curva, novo fincar num degrau. O perigo desconhecia actividades populares inocentes, de Baco anuentes. Na viagem, descansava-se o despreparado corpo. Chegando cedo, lavados os braços e mãos num bidão de água gelada, o sabão de mão em mão, talvez sobrasse tempo para ver tirar a boroa fumegante do velho fogão a lenha, morder o manto duro e escuro de uma massa fermentada e soprar, ao abrigo do olhar sorridente de uma matriarca ainda não partida. O cheiro a doce acabado de cozer saía da cozinha de casa, a sobremesa teria doce de abóbora com nozes! Os saboreados sábados escorriam-me pelos braços. Com o crescimento do corpo, as tarefas mudavam da apanha dos bagos, à vindima de tesoura na mão, até ao transporte dos cestos para o ralador manual, campo acima, campo abaixo, sem mostrar o cansaço que se esvanecia com a promessa em fermentação adocicada de vinho doce dali a uns dias. Havia amizades que se outonaram e desapareceram. Laços familiares que se desataram. Vides orgulhosas agora decepadas e podadores de olhos postos nas nuvens, saudosos. Do lado de lá ainda me espreitam, por entre a folhagem, rostos familiares sorridentes. E uma lágrima que as pálpebras trituram numa recordação sadia que fica a fermentar, nos olhos, enquanto a inocência não regressa e tudo o que somos, fomos ou seremos, é tudo o que temos a ser, quando apenas o Criador nos está a ver.
A chuva miudinha que me molha os braços e as lentes dos óculos trazem-me a surpresa de me ver já no cimo da rua, sem me aperceber como lá chegara. A vindima ainda decorre, entre o nevoeiro, com alguns adultos sentados no muro que delimitava o pequeno latifúndio onde crescem, acredito, as mesmas memórias que cultivaram a minha vida. A mesma questão em voz mais pueril:
– E este cacho, avô, é para a travessa?
Os braços cansados do patriarca pousaram a tesoura de poda, que olhava saudosa para o último cacho, içaram a criança que falara e, depois de lhe dar um beijo na face rosada, respondeu:
– Não. Esse é só para ti.
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