São Simão

“São Simão”, crónica do Nada, no Correio do Porto (aqui).

Com o Domingo a transpirar em bátegas de água, resta-me navegar pelos riachos enfurecidos que escoam ao fundo da estrada, depois dos paralelos, até se aninharem nas verdes encostas de campos abandonados. Dizem que chove, consulta-se oráculos digitais cujos algoritmos, cada vez mais acertam menos, tais as vicissitudes climáticas que, tal como o Homem, estão cada vez mais estranhos.

No meu resguardo à prova de água, sob o guarda-chuva inclinado ao vento, talvez em reverência a Eos, vou caminhando sem astrolábio ou balestilha. Há estrelas, mas não as vejo agora, pois a minha noite ainda não caiu e o firmamento, para já, é este tecido cinzento que se encima sobre as varetas.

A placidez de um São Simão chuvoso, entre falos exagerados com laços azuis e cor-de-rosa, pendurados nos toldos impermeáveis das doceiras, e autocarros estacionados entre regatos, vai contrastando com as canecas de vinho novo, tintadas pela inconstância de mãos sôfregas. A santidade sempre foi profana, mas o receio de uma divindade austera fazia dela, santíssima, um castiçal de finados sem qualquer vela. 

Agora que as ermidas solitárias reverberam no silêncio das montanhas escanhoadas, e as promessas ficam algures entre a tasca e o shopping, não há santo que nos valha e, talvez por aí, se imponha a verdade nua, crua, perante as vestes díspares que ornamentam quem procura o próximo ruído para se ouvir calar ou, que é como quem diz, a roupa etiquetada em cima de um manto nu. 

Não há nada sobre nós, além do universo, e da indistinta perfurada envergadura celeste, que coa a luz divina. E, no entanto, vejo-os sacudirem o destino como se sacudissem o orvalho matinal que os tapara o relento invernal. As pessoas plantam o próprio mal. Neste caso, chove também no nabal. 

A noite amanhece cedo, ao redor do recinto o vento sacode os fios eléctricos onde, também ondulantes, os bolbos iluminados aquecem as gotas de água caídas das nuvens, onde rostos mais ébrios confundem o balcão com o confessionário e, na ausência de prior, descarregam, caneca atrás de caneca, a sua dor. A inocência tudo pode, inclusive perdoar o mal que faz pelo bem que sabe, e se a manhã não traz análise no largo da feira, emborca-se mais uma, que se o homem a fez, o homem a beberá.  

Faço de conta que não ouço, mas escuto. E por entre os salpicos tintos na zincada plataforma da tasquinha, onde a solidão conversa sozinha, ergo o braço e chamo o funcionário, sem grande atenção:

– Traga mais uma, em honra de São Simão.



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