Pai Nosso

“Pai Nosso”, uma tarde de sábado, a nova "Primeira Comunhão", um denominador comum. Na minha mais recente crónica no Correio do Porto (https://www.correiodoporto.pt/prioritario/pai-nosso).


O céu ameaça, intimidado talvez pelas previsões dos entendidos com os seus smartphones, uns trovões sérios, relâmpagos como castigos divinatórios e chuvas que virão lavar as ruas, excepto se vierem na hora de procissão e, aí, vêm é estragar a festa.


Os caminhos que percorro agora, de carro, contrastam com a minha grata e infantil recordação de ir a pé para a catequese aos sábados, no início da tarde. Os paralelos sucumbiram ao peso das preocupações adultas de quem por lá passa, sendo agora cristas graníticas que soçobram à terra e ervas que o tempo ainda não capinou. 


Estacionámos. Saio na inocência de quem estreia umas sapatilhas novas e percorro com reverência o espaço por detrás de Pedro, orgulhosamente crucificado ao contrário e quase consigo escutar o jocoso riso dos romanos, de açoites ensanguentados pendurados à cinta e mãos lavadas debaixo do olhar dos pescadores em segredo. Os bolbos do jardim engalanam-se quando as fotógrafas surgem e capturam memórias que o tempo verá afixado na vitrine da loja, cachos dourados sobre os ombros, o sorriso à mostra, a mão aberta sobre o joelho, o queixo segurado pela vergonha ingénua, o padrinho e a madrinha agora e, rápido!, rápido!, os pais antes que comece a chover! As nuvens negras riem-se da situação.
 

A catequista chama-os e apressa o fotografar da pré-festa de Pai Nosso. Alguns correm escadaria acima e dão trabalho aos anjos da guarda de serviço, que velam pela corrida segura até ao reunir em U na sala, afinando os preparativos finais. Vejo a minha antiga sala, revivo a secura na boca pela ansiedade da minha vez a benzer-me no meio de todos, o gaguejar numa oração heptafrásica que ainda não conseguia compreender na plenitude. O salão que recordo enorme é, no momento, um cubículo na minha imaginação. A mesa gentia preparada com brio é, agora, com a tolha de renda branca, a vela solitária e a cruz tosca, senhora de quem se É, um altar solene, em nada destoando o computador portátil e o projector que, emocionando-me, faz chegar à parede bolorenta uma imagem pouca semelhante ao que Jesus terá sido, ladeado por oito corações vermelhos, com os nomes dos garotos e garotas que escutam, ainda que em segunda voz, o que Mateus ouviu na montanha quanto ao que deveríamos dizer quando quiséssemos rezar.
 

A cerimónia, rematada no sermão final por um senhor trovão, sem diocesanas presenças e testemunhada por assessorias orgulhosas e voluntárias, continua no lanche partilhado onde todos deitam mãos às cadeiras e mesas, por entre rissóis e batatas fritas, bolas variadas e variados bolos, brincam os pequenos recém-empossados às escondidas, numa miscelânea de termos que já perdi no entendimento, saltando o palco e as escadarias, vão por onde não devem e assomam à sanca do perigo.
 

Sem que por eles dêem presença, assoma Buda agarrado a Shiva, placidamente dizendo a Jesus – Deita os olhos a essa fornada que se promete a Ti, precisamos de todos!
 

E Ele, Sorrindo, Escondendo a Face no braço encostado à parede, enquanto a pequena se esconde o melhor que pode, Remata:
 

– 48… 49… 50! Preparados ou não, aqui vou Eu!

 



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