Shabat

Shabat, a minha Crónica do Nada, para ler no Correio do Porto.

 

É dia do Senhor. Faz sentido. O mundo pára e descansa, o Criador espreguiça-se da laboriosa, embora fastidiosa, tarefa de olhar a sua obra, o momento profano em que criou o humano. Galgo as margens do Douro, enveredo nas serpentinas alcatroadas que ladeiam as veredas esverdeadas onde, em tempos de limpeza de valetas, na ausência de cantoneiros, outros de roçadora na mão ou debaixo do sobreiro protegido à escondida da chuva, atrás do suor e da viseira de rede, abrem alas à procissão quotidiana e incógnita. É sábado e é isto que me pede o meu pai. Pai. Ambos.

Várias dúzias de curvas e chegamos. Portas abertas de par em par, a corda da roupa que se iça para que a manobra permita aproximar da porta de entrada e afastar do esforço de descarregar. Sem o saber anoto-me, fitando ao longe os montes de costas voltadas ao Douro, o Sol a escorrer-se na manhã fria, a vizinha provocadora que assoma à janela com testos de alumínio soltando impropérios, ela e os testos, metalizando a chegada ao destino. A mina seca como uma garganta horizontal de um precipício sem fundo fita-me em desafio. Décadas atrás e por lá entraria de lanterna em punho e medo a tiracolo.

Embora resista, as letras voláteis esperam por mim nos socalcos onde pendem os finais das frases, o desfiladeiro de um parágrafo, o grito no vazio da falta de obstáculo e objectivo. Há por aqui vida. E nem o sabia. Que fazer, além de deixar que me escreva a simplicidade genuína de quem nos desarma quando a vida se lhes faz às prestações? Para escrever não há pregões. Apenas silêncios. E soluços abafados na face voltada às emoções. Em poucos minutos, entre estratégias para dar forma ao roupeiro no exíguo espaço, fico a saber de mais de três décadas de vida com o sofrimento pendurado ao pescoço, como o avental. Um casamento com o mal. A sofrida ausência de um carinho quando nem por aqui sabe o bem caminho. Não sou digno, sequer, de entrar em tal morada.

A cozinha feita sobre a varanda onde fora outra cozinha. O chão nu de carvalho roído pelo bicho. As janelas folgadas onde o frio não entra por respeito, as portas retesadas de um verniz quebrado, os amarelados rendilhados alraiolados de um clube pendem porque lá não chega para retirá-los. Ofereço-me e desaperto a cangalhada. Os três fogões alinhados, o Sol que entra pelas frestas de um telhado voltado ao frio. “Herdei-a do meu tio”, quase como desculpando-se, “tomei conta dele e da mulher vinte anos. Acamados”. “É uma vida”. “Fizeram um testamento e deram-ma”. As frases saem monocordicamente, como legendas de um episódio de uma ficção profundamente real. Aceno na justeza da decisão familiar, “criei os meus ali em baixo, naquela” (a casa de pedra sobre pedra cimentado pelo vazio) “casei os quatro e não fui a nenhum casamento”. “Estive casada trinta e sete anos, para nada, só fiquei com dívidas, mas lá o mandei embora, já chegava”. Ofereço-me para pendurar o varão do cortinado no quarto, agradece-me enquanto me mostra as fotografias dos filhos num baptizado “olhe que o rapaz deve ser da sua altura” gaba-se. “Tenho um companheiro. Viúvo. Não fui para casa dele, veio ele para aqui, é melhor assim”. Sorrio anuindo, “fez muito bem” remato sem saber o que dizer enquanto arrumo instrumentos e também o coração, que já me tinha caído aos pés.

O sábado, assim como esta folha, obedece ao confinado espaço onde deitar aquilo que me faz soluçar. Apesar das mãos cheias do que não me sobra remato a narrativa e meio dia escorrido pela fronte. De sorriso garboso despediu-se num “Vá com Deus!” e, epilogamente, solta um ligeiro “há que ter fé, um dia tudo fica melhor”.

Sorrio emocionado. Já me esquecia… hoje é dia do Senhor.

 


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