A guerra

“A guerra”, a Crónica do Nada, no Correio do Porto, pode ser lida também aqui.

Sem muito mais companhia em mim do que a estrada a murmurar os quilómetros em jeito de balada distanciada, percorro o horizonte sem nunca o alcançar, pincelando o céu com algodão doce e nuvens disformes, senhoras do firmamento. A viagem é, por vezes, servida com um lamento.


Com maior ou menor dificuldade, os corpos curvados alinham-se como na formatura, saídos da recruta, moçoilos enviados para um serviço militar obrigatório ultramarino ditatorial, arrancados à parvónia e a uma vida polvilhada de centeio, cereais, madrugadas gélidas e noites musicadas por ais, crescida pelo que a parca informação trazia em forma de boletim. Há quem viva apenas porque sim.


Recordam números e apelidos, identificados pelas terras que os pariram, sem patentes agora, apenas o tempo iguala o homem e corta rente os minutos antes que perfaçam a final hora. As cadeiras arrastam-se, o burburinho no ar reúne os sons das armas semi-automáticas ao ombro, a pose de uma fotografia gasta que, também ela, perde o vigor e alvura de uma luta. Atrás de mim ouço “a guerra é uma puta”. 


Os olhos marejados de água procuram outros que possam sorver as décadas de silêncio que o conflito interno atiça. “Não o consegui na missa”, diz-me, “sabe onde anda o capelão?”. Respondo negativamente com a cabeça, volto-me para o naco de presunto, “Desculpe o assunto”, enquanto se apoia na bengala curvada volta ao desabafo “Queria confessar-me antes que morra”. “Não pense nisso agora!” tento acalmar o bravo que partiu para o ultramar inteiro e de lá numa peça veio, mas com a alma estilhaçada que apenas a morte tratará de apaziguar. “Não”, avivando o lume no marejado olhar castanho e baço, “Sei que fiz muitas asneiras, matei muitos”, a maré agiganta-se no olhar, na contorcida cara, no queixo tremente, os nós dos dedos esbranquiçam-se ao apertar com mais vigor a bengala “Mas eu nem sabia o que fazia. Eram eles ou eu, coitados. Matei muitos, mas não queria, foi tudo sem querer”. Atrás da lente espessa uma lágrima de tristeza rebenta, funga uma vez, cerra os olhos e vira-me costas, talvez para tornar a combater uma nova vez os inimigos interiores e descai-se numa “A guerra foi uma puta. E, depois, a vida também”. Eu que nada percebo da vida além do dia-a-dia, aliás, o tanto compreendo que me é retribuído pelo tempo ao dizer-me que de mim nada mais há esperar (e eu que pensei viver ser apenas respirar e amar), coloco-me no pensamento em absolvição quando me olhou novamente “Desculpe, eu só precisava de falar”.


As vozes agigantam-se, a audição, como a vivacidade, vai-se esvaindo. O segundo comandante discursa num suspiro “Estamos numa idade bonita (pausa) e já sabemos o que nos espera”, todos nas suas oito décadas, a honra e glória de quem por lá andou e regressou rasgado de mérito, os que pela hombridade se mantiveram fieis à distância do desenrasca “se os outros roubavam, porque não havia eu de roubar?” e uma trémula mão no meu ombro pede-me desculpa “é para me agarrar, já estou um bocadinho bêbado”. Bate-se palmas, uns olham para o relógio, humildes, senhores deles mesmos com a imaculada presença terrena de serem fiéis à seriedade, está na hora de ir apanhar a carreira.


A meu lado, um soldado invisível no seu ar de jovem adulto, fardado de luz, olha com ternura para os ex-camaradas, vê as feridas que trazem ao peito, ao invés das medalhas que os generais cravaram a sangue dos subalternos. Confessa-me “aquele é o próximo convocado” e na solenidade de um anjo, sussurrou-me antes de ter partido, “a morte, na guerra, foi o melhor que me podia ter acontecido”.



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