Queimada
“Queimada”, a crónica de um povo que arde, no Canal N.
O pôr-do-sol traz de novo o bailar nocturno dos pirilampos azuis, as intermitências de um socorro enquanto a morte se encosta a um sobreiro recém despido, protegido pelo morno ar que a terra abafa quando cai a vida em trás-os-montes. Colunas de ajuda posicionam-se. A guerra combate-se com a paz. Ei-los, soldados, negros, cinzentos, alvos voluntários. A mão aflita da mãe sobre o ombro do filho ao toque da sirene, “não vás”.
Atrás de cada elevação um novo ocaso. A noite caiu há muito, com ela o peso abafado de um calor que colhemos sem, sequer, o termos plantado. A culpa é dos que manietam, mas nada há a fazer além de desenrolar mangueiras, encher baldes e garrafões, erguer em riste as enxadas, ancinhos e pás. Exaurido, o povo apenas quer paz. Não é rubor de um astro que mergulha feliz no firmamento e deixa, inconsequente, um povo no seu lamento. É o fogo que ruge como fera ronronante ao sabor das presas que tombam.
A torga queima e rebenta, solta floridas projecções de fogo, labaredas bebés que se atiram com o vento onde o lume ainda não queimou e caem, despreocupadas, senhoras da sua natureza, inocentes, levando uma Primavera cinzenta no adiantando do Verão, porque no Inverno a paz, novamente ela, deixará que as sementes germinem em sonos coloridos de branco, cobertas pelo frio manto orvalhado que a lenha queimada aquecerá ao redor da chaminé de pedra. A Natureza não se afina em queixumes. Tem mão firme no que lhe sobrevive, acolhe o que em nós vive.
Os bombeiros correm de aldeia em aldeia, Fogo! Fogo! Fogo!, irrompem mais alto que as chamas os gritos pelo velho Motorola no comando. Arranca um Unimog rugindo pelo corta-fogo, a terra seca acolhe-o libertando o fino pó da agrura que a Terra vai exaurindo, dentro sacodem-se valorosos combatentes, o cansaço agrilhoa rugas negras nas faces inocentes de quem por si se dá à vida. Dos outros.
Nas esplanadas ainda abertas, guarda-sóis cobertos de fuligem, sacode-se das mesas restos de folhas de eucalipto retorcidas e negras e bebe-se mais uma cerveja. O bolso saboreia um pagamento anónimo.
Ao longe, muito longe, nos gabinetes climatizados onde se urdem os destinos financeiros, sorrisos macabros estudam a próxima exploração de lítio, o seguinte empreendimento industrial, o passo adiantado de um jogo de xadrez onde o rei descansa seguro enquanto os Peões, que seguem uma Verdade distinta dos tabuleiros terrenos, se munem de abafadores e tentam, a custo, sacudir o fogo das posses terrenas num mundo que não é seu.
O dia chegará em que as crianças perguntarão: “E onde foi o mal?” E os anjos mais velhos responderão “Ardeu”.
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