Ao Pai

“Ao Pai”, a crónica do dia, no Canal N.

Quando saiu da curva e a estrada lhe pareceu mais curta, sabia que tinha chegado onde deveria. Há uma espécie de limite na cercania, o 19 de Março haveria de ser o limite para a aventura forasteira, de agora em diante a miragem seria a pastagem forrageira.


Calculava com atenção os dias que faltavam, não fosse um fugir à rebeldia dos tempos recentes e deixar passar prazo ao qual se tinha acometido. Tinha saído da sua aldeia quase como foragido, à guarda do futuro calcorreara quilómetros em carrinha alheia, sem que a carteira comportasse a vida no montado, a mulher a cuidar da casa e do filho, o filho a cuidar de crescer e das brincadeiras. Chega-se rápido ao fim do mês, quando ainda que fugidos ao balcão do café, se troquem as moedas e de duas sobrem três, a conta é fácil de fazer, não é?
 

Atravessados montes, conhecidos e desconhecidos, sulcara a saudade entremeada com trabalhos, aqui e ali, nas consultas ao saldo bancário, pelas noites em retiro solitário, não fosse a vontade ser maior que a verdade em assumir a si mesmo: hei-de retornar para a mulher e filho.
 

A carpintaria de cofragem não lhe ganharia a coragem, roubar um filho à sua terra porque a modernidade assim impera, não haver o que ganhar na terra que o viu parir, ter que à língua estrangeira sucumbir, ainda que arranhando palavras num sotaque escondido atrás da genuinidade de ser quem é, receber mais do que pede porque quem acolhe sabe que a vida nos dá quem ela escolhe, e seguindo noite dentro em telefonemas díspares sabendo do filho, da patroa, “tem aprendido bem? Gosta de lá andar, na escola? E tu? Saudades? Muitas.” Sorrindo ao telefonema escondendo o embargado da voz, fez tantas e tantas vezes turnos salteados para que nunca ele e o sonho de regressar se sentissem sós.
 

Havia familiaridade nos subúrbios e na cidade, quem de bem vem, por bem se encontra com mais alguém, nunca faltando incentivo ao regresso, trocou muitas vezes a recordação do sino da capela a chamar para a missa de sábado ao fim do dia, pelo laboral sucesso. Que mais interessa por cá, do que abraçar aquilo que a nossa terra, ainda que pouco, nos dá?
 

E assim, faltando pouco para a hora de chegada, adiantou-se à vida e ela, despreparada, com o avental colado ao corpo, o cabelo sobre as frontes, o puto a brincar às escondidas com o trabalho de casa, atravessada a fronteira regressara a trás-os-montes. Entrou pela cozinha, a mulher assustada salta-lhe ao pescoço e, na perna, sem esperar melhor presente que a presença, pendurava-se o moço.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Pessach

Torrada ou Maria?