Carrajó

 “Carrajó”, a mais recente crónica na secção Crónicas do Nada, no Correio do Porto.


Nada como fazer variar os passos nas direcções que nem eles sabem seguir. Talvez por isso, deduzo, daí nasça a expressão “o caminho faz-se caminhando”. Há a cada restolhar da vegetação o desconhecido animal que se esconde nas sombras que os meus olhos não iluminam. É a noite, felizmente, na pardez do passeio que orla o ribeiro alcatroado onde a pressa se apressa e o claquear das tampas de saneamento parecem o esgrimir das agulhas com que a minha mãe fazia pequenas indumentárias de lã para crianças, e um dedo por cima a colocar mais fio, em troca de um trocado que tanto valia como sentimento de independência, como de migalhinhas se faz pão, acumulando ao que a vida simples nunca precisou.

Desisto de caminhar pela estrada, até porque esta constante rememoração do que habita em mim e de certa forma constrói o meu passado neste hiato de tempo, está a tornar-me desleixado e a velocidade com que a pressa passa por mim poderá nem se aperceber da figura negra que vai sombreando a escuridão rarefeitamente estrelada. No primeiro entroncamento os paralelos apercebem-se dos meus passos, um candeeiro esbate a luz amarelada em sinal de boas vindas e eu sorrio, ainda que seja a cura para tudo, é a mais eficaz forma de emulsionar o que me rodeia. É campo na aldeia. 

O estendal improvisado no arame da videira, agora despida, atravessa o terreno como uma série de bandeiras da nação de um homem são, a roupa pendurada veste a noite nua. À porta de madeira, fazendo companhia ao ferrolho encarquilhado, uma cruz de sobreiro, acastanhado, assinala a cruz, do que se ama, do que se carrega. A casa com as pedras religiosamente alinhadas, sobre elas mesmas pousadas, deixam passar pelas fendas o frio da noite acompanhado do meu olhar, permitindo que veja um fogo aceso de labaredas sorridentes e oscilantes e um mocho de cortiça onde um vulto, acabado de atravessar a parede, se senta e faz companhia ao velho tição que resiste ao dia para ver chegar-lhe a noite aos olhos e aos ossos, enquanto o carro ao longe, sob o telhado de zinco, se acomoda o melhor que pode descansado das viagens que já não sabe fazer.

A vantagem de novo percurso é ter os pés a perguntarem, a cada encruzilhada, que curva deve ficar para trás. A ruralidade é um tufo de resistência verde carrajó entre ermidas, cafés, bombas de gasolina, casas geminadas e por vezes germinadas. Alastra-se como uma mancha de sujidade numa toalha de linho a presença humana, novos caminhos sobre a velha terra que resvalam para o ribeiro apertado, escorrido, erguem-se olhares desconfiados para este tomba-lampiões que atravessa a noite e sussurra – boa noite – sem que o sussurro traga volta. Não há confianças a estranhos. A casa nova, dois pisos, a opulência de uma arquitectura distinta tenta envergonhar o casebre anterior, a porta da garagem automática assemelha-se a alguém que se abre sem ter coração. É. Somos apenas ilusão. A lavandaria pariu uma bacia de roupa seca, cheirosa, quase quente, que nunca vestiu a noite. E no piso de cima um fogo apagado nas labaredas por detrás de uma redoma de vidro onde o calor não aquece o frio de quem se esquece que para entrarmos na vida temos que ter o corpo vazio. Como eu, na distância entre o que sonho ao que sorrio.



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