Presépio de uma pessoa só

“Presépio de uma pessoa só”, crónica no Canal N.


A neblina cinzenta filtra os sentimentos de Inverno e alavanca as recordações envoltas em fuligem, os montes abatidos e os dias de advento na ventania que abana a vidraça descalçada e tilinta num carrilhão de luto negro e enraizado. 

As curvas da estrada asfaltada serpenteiam sem saírem do local trazendo no regresso as marcas dos pneus na neve, as folhas das árvores e pequenos passos de socos arrastados pelo solo, pela vida.

Na alva tarde rural há uma senhora no contrastante luto com a natureza, habitante de montes abatidos, recebendo os filhos emigrados na Suíça, que fugiram de Trás-os-Montes para irem viver por detrás de outros montes albinos, escarpados na distância entre o conforto e a raiz que se esvai a cada Natal ou férias grandes.

Sem pressa, guarda pacotes de papel que embrulham nacos de presunto, algumas batatas, cebolas, nabo, nabiças, repolhos e cenouras, empoleirada na traseira alta do ostensivo carro de matrícula em língua estrangeira, o lenço negro que lhe cai sobre a fronte, as meias grossas de lã, cinzentas, cujo calcanhar molhado saía da soca de pele negra.

O aceno com a mão no ar, pés sobre o manto branco onde os pneus largos do carro de última geração sulcaram caminhos que, poeticamente, ligam-na à distância que os separará, quem sabe pela última vez.

O olhar mareado do filho no retrovisor a afastar-se, o acenar entre o sorriso gelado dos dias pós-Natal e a ladainha decorada que encomendava ao divino a segura viagem de retorno a casa estrangeira, fora do lar que o viu parir. 

Abre a porta, todo o mundo transmontano se escancara, entra na casa cozinha quarto, na mesa ainda o pão-de-ló e o pequeno copo de vinho do Porto que, religiosamente, deixava dias sobre a mesa em memória do marido e, serão após serão, quando as noites se põem sobre a tarde ainda jovem, sentada à lareira no sorriso aquecido pelos cavacos grossos na espessa pedra escurecida, brinda-me na visão do presépio de uma pessoa só.

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