Tempestade
“Tempestade”, a minha crónica de uma tarde quente e abafada, no Canal N.
As nuvens negras, azuladas, incutem uma certa apreensão devido ao ribombar lento que sobe a encosta e traz novos pedidos a Santa Bárbara. Percorre-se o olhar pela vinha e no coração surge o temor pelo que se avizinha. Pé ante pé escuta o borbulhar da vida nos verdes bagos fetais, crescem alheios à natureza ou à voz surda da reza, as mãos ondulam na folhagem, detêm-se aqui e além num cacho maior, mede-se o sonho na promessa de uma boa colheita, afasta-se o pesadelo da tempestade e sua maleita.
O tempo foi sempre senhor de si mesmo, jamais ficou a dever a ele próprio uma estação, se não é agora é depois o tição. Caso o frio se arrolhe tardiamente, virá mais cedo o Verão. É isto, a vida, tudo se paga neste mundo. Ou no outro, mas de lá poucos retornam com as novas, ficamos por cá com as nossas sovas e eles, além, com o que aos dos céus lhes convém.
O vento aligeira-se, a tarde inebria-se de uma brisa morna, a terra quente traz por vezes o diabo no ventre, será hoje o pagamento daquela esquecida jorna? Há um rego composto com o calcanhar da bota e a anotação mental para passar um pouco de fita para tapar o rasgão no tubo que mata à fome a sede da vide.
Começam a cair os primeiros pingos, esparramados, abatem-se pelo céu tíbio de costas, sedentos de aspergir o solo seco, xistoso, e ver ascender a poeira e, com ela, sua amada, impregnar o ambiente com o sedoso cheiro a terra molhada. Um rasgão luminoso e agreste ergue-se ao céu como um cipreste cintilante, pequenos ramos lampejantes agarram-se à retina. Sai do bolso a mão para o crucifixo, entre o indicador e o polegar, espreme-se Cristo na carícia rude de uma mão que ama o fruto, ainda que o afago lhe pareça bruto. Uma ladainha silenciosa irrompe nas horas entardecidas: “onde vais Bárbara? Vou abrandar a trovoada, que no céu anda armada. Manda-a para o monte maninho, onde não haja pão nem vinho, nem bafo de menino.”
E se as orbes celestes não se compadecem de rezas à desfeita, laçaram a promessa de infortúnio e enviaram-na para o esfumado horizonte porque pelo olhar que o agricultor lançou a propriedades que não suas e, na dor alheia de quem pode não colher o que semeia, pediu baixinho por entre os dedos “e protege os outros também”.
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