Demografia

 “Demografia”, crónica no Canal N.

Trás-os-Montes faz-se à estrada quando a demografia, por não saber que todos somos um e, ao mesmo tempo, nenhum, e fruto das necessidades nos fazemos nós próprios lugares, tem que seguir em veículos alvos, com listas vermelhas, vulgos táxis de saúde, descendo o Marão em inclinações suavizadas que o progresso, tarde, mas ainda a tempo, veio adicionar, desviando a viagem dos esses sucessivos que um itinerário de montanha sequioso de olhares perscrutadores exigia. 


Imagino os olhares das mentes indagadoras, a contas com uma doença qualquer que as unidades locais de saúde enviam para a especialidade de um hospital de uma cidade, são-nas poucas, grandes em toponímia, mas parcas em serviços que a todos sirvam. Os olhares, repito, vendo a paisagem sorver o medo e o Sol que nasce no retrovisor do condutor, o reflexo da face como testemunho de um torpor que ficou para trás, junto das migalhas de boroa caseira ao redor da marca circular da caneca de café, no zinco frio da mesa da cozinha. A saudade do gato que a seus pés se aninha. E a fresta do Sol.
 

Na praça da alimentação do shopping, que se transforma em sala de espera entre a consulta e a viagem de regresso, ouço o desabafo para consigo “podia ser pior”. Olhando de soslaio para a grande fila na pequena probabilidade de se ter um prémio na raspadura, “para que raio tanto raspa esta gente?”, uma assoadela no lenço de mão, bordado, “eu lá queria ter que andar a raspar e viver aqui? Mais me vale lá em cima, as oliveiras, a bicharada e a vida como Deus quis”. Acho ser isto que a vida quer ao dizer “aqui só me vale ser feliz”.
 

Uma senhora bem-vestida e educada deixa cair o pão com queijo ao chão, apanhando-o para, rapidamente, deitá-lo ao lixo. “Que nunca lhe faça falta” na fala de quem sabe o que Terra reclama quando não se a ama, falando para o amigo e condutor da ambulância de serviços não urgentes, que lhe traz o tabuleiro de plástico colorido com o sumo e o bolo pedido apontando-o porque “não lhe se sei o nome, só estou habituado à minha tarraçada de cevada!”.
 

Cruzando o olhar comigo, na fala a candura de um amigo, sorri e desabafa “a vida é isto, já bem me pesa, mas ando aqui até Deus querer” enquanto eu, na mesa ao lado, anotando como posso o que ouço, permaneço na espera entre o que a vida deseja e o que este almeja, habitando-me de um corpo que mora do lado de fora de uma alma que deseja outros horizontes. Trás-os-Montes?

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