Semeadura

"Semeadura", crónica no Canal N.


O sonho de um lugar novo para o lar tinha nascido ao mesmo tempo em que as mãos descobriram o afago da redonda redoma do útero maternal, em conversas crepusculares quando nascem e se põe as ideias conjugais, à cabeceira de uma cama em casa emprestada, entre paredes idosas de pedra e corações juvenis de ouro.

No final do dia, quando o cansaço de uma jorna ainda não despertara, os braços bronzeados misturavam areia, cimento e água, vertida depois na cofragem de madeira, dia após dia, para que no fim-de-semana outros braços, familiares e amigos, surgissem para o matutino auxílio tão típico quanto o orvalho suado pelas noites frias e, tijolo a tijolo, sangue a sangue, suor a suor, ganhasse forma a habitação. 

A cozinha exterior foi a primeira edificação, um pequeno assentar de um arraial num terreno ganho à tenacidade das oliveiras. Ali surgiram as primeiras noites da construção, o fogão a lenha debitando o calor com que o amor temperava o rancho, a massa à lavrador, o caldo-verde e, aproximando-se a Páscoa, o pão-de-ló. 

A casa nova, benzida em visita Pascal, ficou como testemunho de um casal agora de uma pessoa só, marido e viúvo, onde as portadas se abrem de manhã e fecham ao final da tarde dando vida aos móveis e paredes sem que sustentem a vida, porque esta leva-se lá fora, no canto do terreno, onde a porta de madeira sempre aberta deixa sair o som da televisão e entrar várias décadas de vida num braçado de lenha. É assim, aliás, que descubro vir o frio ainda com vigor na manhã transmontana, nos cavacos que seguem encostados ao peito debaixo do queixo a arfar, para aquecer e cozinhar.

No dia em que o vi comprar sementes no arraial despido e lúgubre da feira da aldeia, disse-me já à porta da cozinha enquanto afagava a cabeça do cão, que tentava lamber-lhe a mão: 

– Um velho semeia sozinho e cansado, sabes rapaz, só para ver crescer o novo e colher alguma paz.

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