Declama dor

 “Declama dor”, mais uma crónica do Nada no Correio do Porto.


As luzes diluem-se no palco escorregando ao longo das paredes alvas, pousando na ansiedade arfante do peito errante, antes de se esbaterem languidamente no chão do auditório. O burburinho anterior da plateia alheia-se e dá agora voz ao silêncio, a expectativa de um olhar ao lado mais luminoso de um sorriso que, por detrás da cortina, ultima a deformação da pessoa para vestir a personagem.

Notas soltas de um piano preso à mão do compositor, pincelam a noite eterna da alma numa toada amordaçadora que, no condão de sublimar, acalma. 

Caminha, paulatinamente, sibilar, carregando nas mãos as folhas virgens de um papel que não seu, a figura de quem se deixa vestir assexuadamente pelo intérprete, urdindo na sua sombra a realidade como figurante, quase a doer, saltando de banco em banco no público, quem sabe, assim exposto, se faça o privado, tal como o actor, amado?

Há em toda a encenação um prenúncio de rogo, versos rasgados à pele num clamor alheio são vestidos em negrume, entrecortado por uma nota saída de uma tecla pressionada, como a noite quase a sair da madrugada. 

A cada passo escorreito, já a luz se envergonhara da sombra, sobressaem os degraus alados de um estrado que se faz estrada. O candeeiro aquece o horizonte, a plateia suspira na cénica miragem de um precipício feito de palavras. Alvitrara no silêncio os pregões que calariam as razões e ganhara o respeito da própria vida, amaciara a tarde ainda que não incólume, porque o poeta cravara a escrita com a subtileza do cardo, mas o declamador fazia-o a sangue vivo, quase calado.

Saída da gutural hora, o olhar traquina da personagem mirava a sua história, avivava a memória nas pausas quando as folhas se deixavam cair extasiadas de serem lidas e dormitavam no colo de quem vestia o que sorria, deixavam-se acariciar, em paz, nas mãos vazias de quem o espírito limpo traz. Na viagem entre o ir e o voltar, no percurso expressivo de um vocábulo que paira e se abate a cada cerrar de olhos da audiência, como se necessária cegueira fosse para vislumbrar o invisível, subsistia uma golfada de éter, uma folha mais é o que peço e procuro, um pouco mais de voz para que não nos sintamos sós, no mundo, no palco.

Nada pode desejar mais, quem escreve, quem respira, do que ter quem saia da penumbra causada pela sombra da noite e, afoite, mirando a maré numa galera vazia, aponte o barco à costa e navegue terra adentro, até sair de seu próprio suspiro, virando costas ao holofote, na lágrima brotada de uma virgula mal colocada, veja descer o pano ondulado, agora que o mundo foi recitado.

Ele, na noite de natureza quase nua, declama dor, sem tempo para viver a sua.



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