É segredo
“É segredo”, ou talvez não seja, para ler aqui ou no Correio do Porto.
É sábado, manhã fresca apesar da proximidade da Primavera e da pandemia dar os primeiros passos. O frio no rosto vence-me apesar do Sol içar já as sombras das árvores que ladeiam esta velha estrada. Fecho a janela, ligo o rádio. É clássica, a música e a estação, o trinado de instrumentos que desconheço, mas que tão profundamente contrastam com as cacofonias típicas de quem nada tem para dizer.
O medo amordaçador de antigamente amedrontava menos relativamente a este medo gritado que exponencia receios, alastrando-se como um bolor existencial, corroendo onde não se vê, sorrindo azedumes dentro de cada um, na vida que murcha por detrás de um sorriso falho e estilhaça sonhos, por já não sabermos mirar-nos nos olhos.
Encontro o local passado duas curvas e uma figueira grande à esquerda “não tem que enganar” disse-me o meu pai, mas enganei-me. Desço a pequena rua calcetada e estaciono entre duas tangerineiras, “é bom que não me esqueça delas ao fazer marcha-atrás” assinalo mentalmente quando saio. Já esperavam por mim, felizmente. Sai um jovem do pequeno portão de madeira e oferece ajuda. Carregar um móvel, ainda que pequeno, com alguém não habituado a esta nobre arte, é o mesmo que carregar dois móveis, mas toda a ajuda é boa quando de facto ajuda. Não tinha forma de descer os paralelepípedos de cimento com o móvel e comigo.
A cozinha de tecto baixo, falta-me um ou dois palmos para chegar à lâmpada led aparafusada ao painel de sanduiche, tem um aconchego próprio de quem sabe que nem o céu é o limite para quem se sabe voar. Desembrulho o móvel, encosto-o a um canto e ao ver o meu sorriso por quase tocar no telhado a senhora quase que se desculpa, apontando para o prédio de dois andares acima do terreno e
– Compramos um apartamento só para dormir, mas é aqui que estamos bem e agora com vírus, é melhor assim. – Não me devia desculpas ou explicações, mas não consigo deixar de sorrir na simplicidade que aflora neste sábado de manhã e do comentário do marido
– Não se pode ter medo. Nem de viver. Nem de morrer. – de sorriso bonacheirão remata pausadamente, sentado a saborear uma nesga de Sol por entre as sombras dos prédios.
– Tu também achas que não tens medo de nada! – resmunga do alto de décadas de casamento.
– De mim não tem nada a levar – e pisca-me o olho, ao mesmo tempo que encolhe os ombros e enfia as mãos no casaco de malha.
Despeço-me e venho embora. Lembrei-me das tangerineiras e suas ramagens a tempo e enquanto vejo no retrovisor a casa de tecto baixo que chegava ao céu, questiono-me. Talvez seja isto que, afinal, nos amortalha, a cadência de um sábado de manhã abandonado pelo medo.
Chama-me a vida a um canto e sussurra “não escrevas isto, é segredo”.
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